sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Desvio de foco: cúmplices da repressão querem 'investigar' a esquerda

quarta-feira, 27 de julho de 2011

É tempo de criação de uma Comissão da Verdade com o objetivo de se esclarecer de uma vez por todas as violações de diretos humanos ocorridas no período da ditadura civil-militar que assolou o Brasil a partir de 1 de abril de 1964.

Projeto nesse sentido está tramitando na Câmara dos Deputados, mas que vai depender da mobilização da sociedade brasileira para que se torne uma realidade concreta e não apenas um arremedo que no final das contas não esclareça verdadeiramente os fatos ocorridos no período da ditadura e que depõem contra o gênero humano.
Setores conservadores com espaço garantido na mídia de mercado, como no jornal O Globo, já tentam de todas as formas incutir na opinião pública a ideia segundo a qual deve se investigar também o que fez a esquerda de 64 a 85. Eis aí uma falsa discussão, que só serve mesmo para desviar a atenção do que se deseja mesmo, ou seja, o esclarecimento de tudo o que aconteceu em matéria de desrespeito aos direitos humanos pelo Estado brasileiro e que foi jogado debaixo do tapete.

A esquerda já foi devidamente investigada, inclusive por setores que hoje tentam de todas as formas possíveis evitar que se conheçam as verdades. Foi também punida, com assassinatos, prisões, torturas e cassações de mandatos de representantes do povo que não compactuavam com o arbítrio.

O que se quer também é que nesta Comissão da Verdade que está sendo apreciada pelos deputados haja espaço para a Memória e Justiça. Há casos concretos, com testemunhas vivas, sobre fatos importantes e que ajudarão a se chegar a Verdade com maiúscula. 

Se funcionar mesmo como se espera, a Comissão, mesmo chegando atrasada ajudará a desvendar muitos segredos, inclusive à participação de serviços de inteligência de países como os Estados Unidos, especialmente a CIA. Se alguém tem dúvidas a esse respeito deve lembrar a participação na polícia de Minas Gerais do agente Dan Mitrione.

Para os que têm curta memória, Mitrione foi convidado para ensinar aos policiais mineiros pelo então golpista civil, governador Magalhães Pinto. O agente estadunidense ensinou a prática de tortura aos repressores brasileiros. Tanto assim que acabou recebendo uma condecoração por serviços prestados à polícia de Minas Gerais.

Mitrione morreu assassinado ou justiçado, dependendo do ângulo de entendimento do fato, em Montevidéu, ao ser julgado pelo grupo armado uruguaio Tupamaros. Na ocasião foi constatado também o recebimento por Mitrione da medalha por serviços prestados, concedida pela polícia mineira. O fato está relatado no filme Estado de Sítio, de Costa Gravas, um clássico da cinematografia e serviu ao grupo armado que o descobriu a formar juízo sobre o agente.  

É muito importante lembrar a presença de Mitrione no Brasil pois  remete à participação da CIA por aqui, fato que precisa ser devidamente investigado e que também ajudará ao esclarecimento oficial das violações dos direitos humanos.

E se há dúvidas sobre a presença de Mitrione em Belo Horizonte, uma consulta aos jornais mineiros da época mostrará como o agente da CIA foi recebido com honrarias pela alta sociedade de Belo Horizonte.

Há também testemunhas de que em interrogatórios no Cenimar (serviço de inteligência da Marinha) estavam presentes agentes falando inglês e que poderiam ser observadores ou orientadores de torturas. Seja qual tenha sido a participação desses agentes, caberia a uma Comissão da Verdade esclarecer tais fatos.

Vários cidadãos brasileiros, vítimas da ditadura que passaram por aquele serviço de inteligência, inclusive o professor Luiz Alberto Moniz Bandeira, hoje vivendo na Alemanha, podem prestar informações sobre fatos que vivenciaram.

No prefácio à quarta edição do livro “Presença dos Estados Unidos no Brasil”, publicado há dois anos, Moniz Bandeira confirma a presença de dois agentes da CIA quando ele esteve preso naquela dependência da Marinha. “No pelotão do Cenimar, que me prendeu na minha granja, havia um estrangeiro, que se dizia tcheco, mas na verdade era americano e da CIA. Isto posteriormente me foi confirmado por um oficial de Marinha“.

E Moniz Bandeira acrescenta: ”Quando cheguei preso ao Cenimar, vi dois homens falando inglês. Não sei se eram oficiais. Estavam à paisana, com camisa de manga curta, como os americanos usavam e só podiam pertencer à CIA, cuja cooperação o único órgão de inteligência que aceitou, no governo Jango, foi o Cenimar”.

Moniz Bandeira é um importante pesquisador e conhece a fundo as relações Brasil-EUA. Seu depoimento numa Comissão da Verdade seria da máxima importância e ajudaria os brasileiros a conhecerem com maior precisão a participação da CIA na repressão aos movimentos de oposição.

Isso é importante e naturalmente está no contexto da Comissão Nacional da Verdade, e acrescente-se: Memória e Justiça. E para que isso aconteça, vale sempre repetir, é fundamental que a opinião pública também exija que a verdade oficialmente venha mesmo à tona e se evite um acordo para que não se vá ao fundo das questões. Além do mais, quem pode garantir que a CIA não continua atuante por aqui e até mesmo cooptando colaboradores?
Mário Augusto Jakobskind - Direto da Redação

47 anos do golpe militar: a coragem de um militante

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sexta-feira, 1 de abril de 2011

Umberto já na clandestinidade, em 1967, com cerca de 20 anos
Hoje faz 47 anos que ocorreu o golpe militar no Brasil, por meio do qual se instalou uma ditadura que tanto violou os direitos humanos em nosso país. A seguir, o relato de Umberto Trigueiros, militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), que foi preso, torturado e exilado, trocado, junto a mais 69 presos políticos, por um dos diplomatas sequestrados durante a ditadura. A entrevista foi concebida ao site Fazendo Media.
1-) Gostaria que você contasse um pouco da sua história pra gente.
Meu pai era getulista, não era militante político nem nada disso, mas sempre tinha essa tendência eleitoral. Por volta de 63 eu fazia movimento estudantil, era secundarista, e participava da federação dos estudantes numa escola chamada Maria Tereza, em Niterói. Nessa época também, aos 15 anos, eu participava como voluntário do Plano Nacional de Alfabetização. A gente ia para o interior alfabetizar lavradores. O engajamento político se deu a partir daí. Eu entrei para a Juventude Comunista, me filiei ao partido, e comecei a militar.
O PCB?
É. E em 64 veio o golpe com toda a repressão. O movimento estudantil num primeiro momento teve as suas lideranças mais visíveis muito atingidas, mas os militantes não foram tanto. Mas o movimento sindical foi bastante afetado pela repressão, Niterói é uma cidade marcada por uma organização sindical muito forte. E nós, que éramos parte de alguns grupos da juventude, começamos a ajudar o partido a se reestruturar nessas bases na capital e no interior do Rio de Janeiro. Então a minha militância começou assim.
E a partir daí?
Depois eu entrei na universidade, fiz vestibular para ciências sociais na UFF, que na época era UFERJ, acho que era a segunda turma da universidade. A militância continuou. Eu fui eleito para a diretoria da União Estadual dos Estudantes (UEE), que já estava na clandestinidade e, portanto, toda essa estrutura de uniões estaduais e a União Nacional foi banida pela ditadura. Logo em seguida fui eleito para a diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE), como vice-presidente, no Congresso de Belo Horizonte.
Já na clandestinidade, né?
Uma semi-clandestinidade, eu estava estudando, fui preso algumas vezes. Mas a UNE já estava na clandestinidade.
E você chegou a ser preso antes de ser vice-presidente da UNE?
Nessa época de movimento estudantil. Era um mandato de um ano, 66/67 se não me engano, e também paralelamente estava militando no partido. Nessa época tinha um grande embate político dentro do partido por conta da avaliação de como o partido tinha se comportado no governo do Jango, as atitudes que ele tinha tomado em relação ao golpe militar, então acabou havendo uma divisão. Muitos setores saíram e criaram outros grupos, outras organizações.
Eu saí do partido nessa época com muitos outros companheiros, e começamos a trabalhar na criação de uma outra organização com a proposta de enfrentar a ditadura de uma maneira mais contundente. Nesse período eu passei a ser perseguido, fui expulso da universidade pelo decreto 477, a chamada lei Suplicy, e passei para a clandestinidade total. Saí de casa, e a minha militância se aprofundou, nós criamos uma organização que se chamou Movimento Revolucionário Oito de outubro (MR-8). Ela incluía estudantes, uns setores da área de operários navais, outros do interior do estado. Inicialmente foi uma articulação mais nacional, depois foi se reduzindo em função da repressão. Essa militância clandestina se deu em várias cidades do Brasil, e em 1969 eu fui preso aqui no Rio de Janeiro e fiquei na prisão durante dois anos. Tive três condenações, três processos diferentes. Não tinham muito fundamento jurídico, eram acusações baseadas na lei de segurança nacional que a ditadura produziu.
Como foi a prisão?
Eu fui preso em Niterói, aliás no dia do meu aniversário, 15 de fevereiro de 1969. Estava fazendo contato com um familiar que há muito tempo eu não via, e fui preso. Havia um processo de devassa na universidade. Essa foi uma prisão casual, no sentido de que eu estava sendo procurado, mas não foi uma coisa que estava no encalço da minha militância clandestina; era de informações anteriores. No primeiro momento essa prisão não foi muito pesada, porque era uma coisa relativa à minha participação no movimento estudantil.
Não sabiam que você era do MR-8?
Não, mas eu fiquei preso no 3º Regimento de Infantaria, em São Gonçalo, e depois fui transferido para o forte que se chamava Rio Branco. Fiquei 30 dias ali numa solitária, nu, dentro de uma guarita improvisada, e era interrogado. Não que eu não tenha sofrido nenhuma violência, porque isso já é uma violência, e algum tipo de agressão física, mas não era uma tortura física sistemática nesse lugar.
Depois fui para a Fortaleza de Santa Cruz, que então funcionava como presídio do exército e tinha uns presos políticos. Começaram a prender pessoas da minha organização e de outros grupos, com os quais nós tínhamos relações, e a partir dessas prisões eu fui identificado. Fui transferido para a Ilha das Flores, que hoje não é mais uma ilha e é até hoje uma base da marinha, que na época se transformou num centro de tortura. Ali sim estavam muitas pessoas da minha organização e de outras, grupos e partidos de esquerda, e a tortura era sistemática. Depois dessa fase eles montaram um processo que levou à nossa condenação. Voltei para a Fortaleza de Santa Cruz, mas já numa outra condição.
Já de condenado?
Não de condenado ainda. Lá tinha um nível mais acima, uma parte da prisão que era para oficiais, sargentos e alguns presos políticos como intelectuais. O Darcy Ribeiro estava lá. Da primeira vez eu fiquei lá, quando eu voltei eu fui lá para o porão, inclusive num lugar que se você for visitar a Fortaleza hoje , eles não levam visitante nesse lugar. Depois eu fui transferido para Ilha Grande, onde eu cumpri a pena. Mas nesse período, era uma época em que a guerrilha urbana no Brasil fez vários sequestros. E o último deles foi o do embaixador suíço, e eu fui pedido na lista dos que iam ser trocados por ele.

Nesse tempo de prisão você conseguia ver a sua família?
No primeiro momento não, eu fiquei dois meses incomunicável durante a minha prisão. Depois eu passei a ter visitas uma vez por semana. Na Ilha das Flores eu tive uma visita só, é muito interessante porque esse lugar antigamente foi um centro de triagem da imigração no Brasil; era um hotel de imigrantes.

 A curiosidade disso é que o meu avô paterno foi diretor desse centro de imigração, ele morava lá com a família e o meu pai nasceu lá. Ele [o pai] só foi conhecer a ilha quando foi me visitar nessa vez que eu estive preso, e foi essa a visão que ele teve do lugar onde nasceu. Enfim, depois a gente foi para Ilha Grande e de lá eu saí para o exílio. 

O que você acha que definiu a entrada de alguns militantes para esse movimento de resistência mais direto, para a luta armada, e os outros que se mantiveram no PCB e em outros processos de resistência?
Houve diferenças políticas de ponto de vista em relação a como enfrentar aquele processo. Mesmo na luta armada tinha muitos grupos com pequenas diferenças políticas e isso é muito produto da clandestinidade. Porque a clandestinidade impede a comunicação, a circulação da informação, a discussão, o esclarecimento, então qualquer discrepância pode levar a um rompimento ou à dificuldade de se unir. Mas tinha grandes linhas: os militantes, partidos e organizações, que não eram só jovens, mas pessoas como o Apolônio de Carvalho e o Mario Alves, que eram antigos comunistas, optaram pela luta armada de maneiras diferentes; tinha aquele grupo que achava que era preciso ter um arrefecimento da luta popular, das massas, mas que não era o momento do enfrentamento; e o outro, que eu vou botar como exemplo o que ficou do PCB, que achava que tinha de se procurar brechas democráticas e não havia condições de enfrentar a ditadura. Eram essas as grandes diferenças políticas.
Madrugada de janeiro de 1971, Umberto e 69 presos políticos trocados pelo embaixador suiço
Tem a convicção e certa impulsividade das pessoas também, porque na época nós éramos muito jovens. Quando aconteceu o Ato Institucional nº 5 (AI-5) você não podia mais fazer qualquer manifestação, os sindicatos foram banidos, foram se esgotando todos os canais de participação popular política. Então isso precipitou essas opções, algumas pessoas também por razões de ordem pessoal não quiseram seguir adiante no aprofundamento dessa militância. Ou até mesmo por temor, o que é absolutamente compreensível.

Você na sua decisão pessoal pesou os riscos? Você tinha medo?
Tinha medo, claro. Pesei, para mim a primeira coisa muito difícil foi sair de casa porque eu tinha 18 anos, olhando hoje eu era um garoto, mas na época eu não achava que era. Eu saí inclusive antes de ser perseguido, porque eu comecei a ter discrepância com o modo de vida da minha família e eles não queriam que eu me metesse nisso, estavam com medo, com toda razão. Mas eu estava decidido, saí, mas foi muito dolorido porque eu tinha uma ligação muito forte com a minha família. Enfim, eu sabia de certa maneira os riscos que eu corria, que eu podia ser morto. Eu acreditava que aquela ideia poderia avançar, construir alguma coisa melhor, e até mesmo sabendo que eu poderia não sobreviver a isso. Tinha essa convicção.

E naquele congresso da UNE em Ibiúna, você já tinha sido preso?
Eu fui lá porque conhecia muita gente, tinha ligações com as pessoas, mas não estava mais militando no movimento estudantil, fui preso e depois solto no mesmo dia. Depois descobri que eu tinha uma condenação por aquele congresso que eu não sabia. Aparece quando eu peguei o meu dossiê na Abin. Isso foi quando eu entrei com o processo de anistia, mais ou menos em 1997. O processo demorou mais de 10 anos para ser julgado. Tinha muito relato de cagoetes, de caras que vão e seguem você, e as coisas que estavam nos autos do processo da auditoria da marinha e da aeronáutica sobre o MR-8 e o movimento estudantil. Tinha também coisas absurdas que eu não participei e nem sabia, além de coisas posteriores já da anistia, no governo Sarney. Inclusive dados meus de observação da polícia até 1990, quando já havia terminado a ditadura.

Eu gostaria que você relatasse esse dia em que vocês foram trocados pelo embaixador. Quais foram os momentos mais marcantes dessa saída do Brasil?
Eu estava preso na Ilha Grande, e no dia 7 de dezembro de 1970 nós soubemos através dos presos comuns, que ainda não estavam misturados na mesma galeria, do sequestro. Ficamos na expectativa do que viria a ser isso, porque como os outros tinham trocado presos nesse também trocariam.

Sobre os outros seqüestros vocês também tinham conhecimento?
Sim. Rapidamente se confirmou essa notícia porque o guarda penitenciário entrou na galeria e fez uma revista para descobrir rádios e fontes de informação, e nos isolou. Acabaram os banhos de sol e as visitas. De vez em quando a gente conseguia alguma informação através dos presos comuns nas galerias em frente por gritos ou linguagem de sinais. As portas eram fechadas, não tinha grades.  Passou um tempo e chegou um helicóptero na ilha, os caras vieram e abriram a minha cela e me chamaram.

Você estava sozinho?
Era uma cela com mais duas pessoas. No total, se não me engano, tiraram seis pessoas em um primeiro momento e isolaram a gente em outra galeria. Fizeram a identificação, tiraram fotos de tudo quanto é jeito, fizeram um exame médico, uma série de perguntas e nos isolaram. Não disseram nada. Passaram alguns uns dias e eles trouxeram, se não me engano, mais quatro pessoas de lá da galeria para outras celas individuais. Passamos o natal lá, só sabendo que estávamos na lista.

Esse seqüestro durou 38 dias, e uma semana antes da gente sair veio um helicóptero e nos levaram. Havia seis pessoas dentro do helicóptero, no meio do caminho ameaçaram que jogariam a gente no mar e tal. Chegamos na base aérea da aeronáutica, no aeroporto Santos Dumont, e jogaram a gente num hangar. Esse helicóptero saiu de novo a Bangu para pegar umas companheiras que estavam presas lá, com alguma violência, espancaram uma delas. Daí nos levaram para o batalhão de Barros, que fica em São Cristóvão, e nós ficamos sem notícias por uns dias. A gente não sabia que estava havendo essa dificuldade na negociação, de que eles negavam algumas pessoas. Os quatro que ficaram lá em Ilha Grande não saíram, a ditadura negou. O argumento era de eles estavam com penas muito longas, ou cometeram crime de sangue, na verdade isso era um pretexto porque ninguém estava condenado em última instância. Era uma cortina de fumaça para tentar enfraquecer a coisa do sequestro.
Umberto é hoje diretor do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
No dia 13 de janeiro eles nos colocaram em três camburões muito pequenos, que chamavam de rádio patrulha. Imaginamos que teria uma decisão do seqüestro, e nos levaram para um pátio, pararam lá. Era verão, 13 de janeiro, e nos deixaram lá e começamos a passar mal porque era muito calor, um forno. Começaram a fazer chacota da situação: ‘ah, vocês vão derreter aí. Ih, esquecemos de ligar o ar’. E nós ali disputando as frestas para respirar e isso durou horas, parecia que iríamos estourar. Lá pelas tantas eles abriram as portas dos camburões, a gente viu que já tinha gente meio desmaiada, e vimos que estávamos na base aérea. Já tinha outras pessoas de outros estados e ficamos ali o dia inteiro. Identificaram a gente de novo, mandaram tirar a roupa, fizeram foto, e nós esperando sem nenhuma informação. Quando foi por volta das 11 e pouco da noite eles reuniram a gente e nos levaram para a pista, foi aí que vimos viu que íamos sair. Estava lá um avião, estava cheio de fotógrafos, e nós o tempo todo algemados uns nos outros.

O que você sentiu nesse momento?
Eu achei que tinha dado certo, mas você fica na expectativa até o último minuto. Porque eles levaram a gente com policiais armados, e qualquer notícia, por exemplo, que eles tinham conseguido encontrar o embaixador, o avião voltaria.  Mas tinha esperança de que já tinha dado certo porque eles já tinham publicado a lista. E fomos nesse vôo da Varig direto até Santiago. Chegamos de madrugada e tinha uma manifestação, no Chile tinha muitos refugiados brasileiros e de outros países; era o começo do governo Allende. Nos emocionamos muito, começaram a tirar as algemas e aí a gente viu que o negócio tinha acontecido mesmo. Nos levaram para uma hospedaria do setor de assistência social, a cidade estava amanhecendo, as pessoas chegando para o trabalho e sabiam da notícia e, então, nos saudavam, acenavam. Aí chegamos nesse lugar e ninguém conseguia dormir, porque passamos o dia todo numa ansiedade enorme, mas também não íamos para rua, ficamos ali como se estivéssemos presos.  Depois ofereceram um almoço e todo mundo comia de colher, ninguém pegava nem o garfo, nem a faca, porque na prisão todo mundo comia de colher.

E você se lembra do seu primeiro passeio no Chile?
Ah, me lembro. Voltei de Camburão [risos], porque nós nos perdemos. E aí a polícia perguntou onde estávamos e contamos, e então eles disseram: ‘a gente leva vocês lá’. E nós: ‘não, pode deixar’. Mas aí ficamos sem graça e eles nos levaram, éramos uns quatro, e voltamos de camburão. Quando chegamos lá foi uma piada. E começamos pouco a pouco a entrar naquela situação que era muito especial, um país numa explosão de liberdade, reforma social. E eu fiquei lá até o fim [do governo de Allende]. Sai de lá algumas vezes para outros países, depois voltei e na reta final quando houve o golpe de estado eu estava lá e fiquei na clandestinidade alguns meses, antes de conseguir sair. Depois fui para Cuba, onde fiquei cinco anos. Depois fui para a Europa, Suécia.  

Como foi esse tempo em Cuba?
Muito bom, primeiro fiz trabalho voluntário ajudando a construir prédios. Porque quando nós chegamos lá eles doaram para cada família de refugiados um apartamento nos edifícios populares. A gente achou que devia fazer uma retribuição, daí montamos uma brigada de construtores, fomos lá no ministério da construção para aprender como fazia. Eles forneceram assessoria técnica e nós construímos um edifício para doar à central de trabalhadores. Depois eu trabalhei como professor de geografia econômica no hospital universitário, trabalhei como jornalista também num jornal, e depois fui para a Suécia. Quando houve a anistia eu estava na Suécia.

Você perdeu alguém nesse período de ditadura?
Perdi muitos amigos. Tem alguns que não se sabe o paradeiro até hoje, nunca foram assumidos. Na própria UFF, a minha turma tinha 15 pessoas e se formaram cinco. Desses tem uns dois ou três mortos.

Como é que foi a volta para o Brasil?
A volta foi muito estranha, porque a expectativa sempre era voltar. Eu tentei voltar várias vezes clandestinamente, mas no esquema que estava para me receber as pessoas eram presas e mortas. Mas no exílio eu não imaginava que ia acontecer uma anistia, só depois que foi caindo a ficha porque o regime foi ruindo e percebemos os sinais da sua deterioração. Nunca tinha imaginado que eu voltaria para o Brasil dessa maneira, isso me surpreendeu um pouco.
Eu estava num momento da minha vida em que eu tinha resolvido assumir um pouco o meu lado pessoal, estava com uma companheira recente e um filho recém nascido. O meu filho nasceu em agosto de 79 e a anistia foi em setembro, então eu tinha montado uma casa pela primeira vez com móveis que a gente comprou. Veio a anistia e todos começaram a ir embora. Não dava para vir naquele momento, eu estava com um bebê nascido, não tinha dinheiro, então resolvi ficar um tempo por lá para criar condições. Quando voltei fui morar na casa dos meus pais em Niterói com a minha companheira, que é chilena, estamos juntos até hoje.
Quando eu cheguei aqui tinha uma crise muito grande no Brasil, desemprego, recessão, difícil a situação. E quando você está longe 11 anos, o que você imagina que é o país não é mais o que você achava que era. Eu tive uma dificuldade grande de adaptação, porque eu não me identificava com os movimentos políticos e as pessoas, não conseguia entender muito o que estava acontecendo. Isso levou um tempo e foi bastante difícil.

Como você avalia as políticas até então para a abertura dos arquivos da ditadura?
Eu acho uma lástima isso não ter avançado mais, porque não é possível afiançar um processo democrático sem rever a história do país. E quando eu falo isso não é só em relação a esses arquivos, porque há muitos outros arquivos não revistos como, por exemplo, os da época da Revolta da Chibata. Arquivos de levantes que aconteceram durante o século XX, alguns que nem eram de esquerda propriamente. Foram diversos tipos de movimentos que foram extremamente reprimidos e ainda muitos desses arquivos não são acessíveis. Arquivos até da Guerra do Paraguai não são acessíveis, sob o pretexto de alguma segurança nacional. E nos casos mais recentes, em que as pessoas ainda estão vivas, é um direito que elas e seus familiares têm. Principalmente nos casos dos desaparecidos, de saber em que circunstâncias as pessoas desapareceram, se há ou não restos mortais.

Entendo que há dificuldades políticas do lado dos governos, as alianças que são feitas aqui e ali acabam comprometendo, mas não é perdoável isso. É uma coisa que não pode ser aceita assim normalmente, isso tem de ser combatido, não dá para conciliar com isso.  Não se trata de vingança. A lei da ditadura não permitia tortura nem desaparecimento, você quando ia para o quartel o cara que te recebia dava um recibo. Na verdade essas pessoas cometeram crimes, contra a sua própria legislação, então acho que isso é inaceitável e não é bom para o país. Não é bom para o avanço democrático, não consolida as instituições. Mas também boa parte disso depende de nós, não é só do governo.

Como é que podemos lutar por isso?
O problema é que isso cada vez vai ficando mais longe. Eu estou com 63 anos, então muita gente já morreu. Eu acho que a sociedade tem que se apropriar disso porque não é um problema da nossa geração: é um problema do país. Tem que se mobilizar através das organizações da sociedade civil, pressionar o parlamento e os órgãos judiciários para que isso não aconteça. Porque isso continua acontecendo, a autoridade comete atropelos, isso está todo dia nos jornais, e eles ficam impunes. Então isso não garante a democracia.
Por isso que é importante existir esses grupos de direitos humanos, movimentos de resistência, levar essa memória para dentro das escolas, discutir essa questão, para que isso não desapareça. Porque se isso desaparecer você cria o efeito bumerangue, um dia pode voltar de outra maneira com medidas autoritárias, com uma série de coisas que a pessoa não tem memória do que é isso. 

Como você avalia a memória sobre esse período, apesar dos arquivos não terem sido abertos? Hoje se sabe mais sobre o que aconteceu?
Se sabe um pouco mais do que antes, mas há muita hipocrisia nisso. Se sabe hoje, por exemplo, que a grande mídia foi extremamente conivente com a ditadura. Conivente ao ponto de operar junto com a repressão: a operação bandeirantes em São Paulo muitas vezes operava em carros da Folha de S. Paulo. Não é só de dar publicidade e a versão, é de ser conivente com as ações de terror que eles praticaram. Tudo isso está meio escondido, parece que é uma invenção, mas não é não, é verdade. Grande parte da mídia foi conivente com isso, e muitos políticos e instituições.

A ditadura não foi uma loucura feita nos quartéis: ela teve respaldo em setores da sociedade civil, empresários, então isso não está muito esclarecido. O que está esclarecido são os extremos, o que os órgãos da repressão fizeram, isso está começando a aparecer pouco a pouco apesar dos arquivos não serem abertos. Mas esse outro aspecto está meio diluído, o que foi feito com esse país. O Brasil vinha num processo de desenvolvimento, de construção de uma soberania nacional, que foi cortado violentamente de uma hora para outra e a recuperação disso até hoje a gente não conseguiu refazer direito: a memória nacional, a escola pública, uma série de políticas que não conseguiram ser recuperadas porque é muito difícil formar quadros e lideranças. Programas como o de estímulo ao mercado interno estavam sendo realizados, é claro que não se pode comparar o Brasil de 60 anos atrás com o de hoje. Tinha coisa de casa popular, de roupa mais barata, subsidiada, uma série de medidas que eram mais ou menos com esse espírito do PAC e essas coisas que foram feitas agora no governo Lula, já tentadas lá atrás. Foram precisos muitos anos para se retomar isso, então eu acho que o Brasil estaria noutro lugar se não tivesse acontecido isso.
Fazendo Media

Perfil que traz Dilma como guerrilheira faz sucesso na Grã-Bretanha

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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

   Dilma foi torturada durante o regime militar

Um perfil de Dilma Rousseff publicado antes do primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras foi a notícia mais lida do ano no site  do jornal britânico The Independent, um dos maiores da Grã-Bretanha, segundo uma lista publicada nesta quinta-feira pelo próprio jornal. A reportagem, publicada no dia 26 de setembro, previa a eleição de Dilma já no primeiro turno, uma semana depois, e dizia que ela se transformaria com isso na “mulher mais poderosa do mundo”.
“A mulher mais poderosa do mundo vai começar a despontar no próximo fim de semana”, iniciava o texto, intitulado: “Ex-guerrilheira Dilma Rousseff pronta para ser a mulher mais poderosa do mundo”. Apesar do favoritismo indicado pelas pesquisas de opinião uma semana antes da eleição, Dilma acabou não tendo votos suficientes para vencer a disputa no primeiro turno e foi obrigada a disputar o segundo turno com o ex-governador de São Paulo José Serra.

‘Forte e poderosa’

 A reportagem do Independent, porém, dava sua vitória já no dia 3 de outubro como quase certa. “Forte e poderosa aos 63 anos, esta ex-líder da resistência a uma ditadura militar apoiada pelo Ocidente (que a torturou) está se preparando para tomar seu lugar como presidente do Brasil”, dizia o texto. “Como chefe de Estado, a presidente Dilma Rousseff deixaria para trás Angela Merkel, a chanceler (premiê) da Alemanha, e Hillary Clinton, a secretária de Estado dos Estados Unidos: seu enorme país de 200 milhões de habitantes está se esbaldando em sua nova riqueza petrolífera. A taxa de crescimento do Brasil, que rivaliza com a da China, é uma que a Europa e Washington podem apenas invejar”, afirmava a reportagem.

No início de novembro, já depois do segundo turno vencido por Dilma, a presidente eleita foi classificada pela revista norte-americana Forbes como a 16ª pessoa mais poderosa do mundo. A lista da Forbes traz duas mulheres à frente de Dilma – Merkel, na 6ª posição, e a líder do partido majoritário indiano, Sonia Gandhi, na 9ª. Hillary Clinton era listada como a 20ª pessoa mais poderosa do mundo.


A relação das notícias mais lidas no ano no site do Independent coloca o perfil da futura presidente do Brasil à frente de notícias como a publicação da autobiografia do escritor Mark Twain um século após sua morte (2ª mais lida) e sobre uma pesquisa que poderia levar à cura do resfriado comum (3ª).
Com informações da BBC

Porões da ditadura: Sítio da tortura esconde cenário horripilante

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terça-feira, 23 de agosto de 2011

 Na zona sul de São Paulo um sítio isolado guarda, esquecido, histórias de terror que podem ser a chave para entender um dos pontos mais obscuros da ditadura – os centros clandestinos de tortura. E a assombrosa colaboração civil 

 

“Você está em poder do braço clandestino da repressão. Ninguém pode te tirar daqui”, é o que você ouve quando chega no sítio, depois de mais de uma hora metido no banco de trás do fusquinha com um capuz quente na cabeça, e a cabeça entre as pernas.
Você foi apanhado na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, uma das mais movimentadas de São Paulo. Te enfiaram dentro do carro, dois homens grandes, meteram o capuz. Então você é todo ouvidos e corpo, e cada balanço ou ruído vai se gravando na sua mente tão vivo que você se lembrará deles para o resto da vida.
Minutos depois, pegam a estrada. Tráfego intenso. Saem da cidade, estradinha de terra, passa um trem, devagar. Quando o carro finalmente estaciona, você ouve a frase de boas-vindas e, apavorado, consegue memorizar o chão de cimento, por onde é empurrado antes de ser arremessado por escada que leva a um lugar subterrâneo. Os seus algozes chamam aquilo de “buraco”, com razão. Não tijolos, nem paredes, o calor é forteç cada vez que você apalpa à volta, caem blocos de terra molhada. O chão é lodoso. Seu cativeiro é úmido e infinito.
Quando te tiram a roupa – você vai ficar assim por muito tempo. Primeiro: o pau-de-arara. Trata-se de um invento simples, bem brasileiro. Uma barra de ferro apoiada sobre cavaletes, onde te penduram enrolado, pesando sobre os braços e pernas. Eles te batem, te chutam, dão choque elétricos; nada de maquininha de Tio Sam, são fios desencapados que chegam diretamente no sovaco, na barriga, na boca.
Se divertem com isso, assim como se divertiram desde sempre aqueles que têm o poder de torturar. Quando você fraqueja, te levam a outra sala – piso de taco – onde perguntam tudo o que sabe, que atordoado você tenta esconder. Eles não vão te deixar em paz.
Você se pergunta: por que está ali? É 1975. Já se passaram dez anos desde o golpe militar no Brasil. O novo governo dos milicos (general Ernesto Geisel) prometia uma volta pacífica à democracia, com um governo civil.
Depois de prender centenas de opositores, mandar milhares para o exílio e exterminar os grupos de resistência armada, a ditadura começava a querer ser vista como “ditabranda”. É claro que você não acreditava, mas estava em todos os jornais. De qualquer forma, você era conhecido publicamente, não devia temer. Jamais se envolveu na luta armada; advogado, comunista do Partidão (PCB), foi vereador e deputado federal, você sempre acreditou na política. Pela sua atuação, já havia sido preso. Mas torturado, jamais. Até o dia 1 de outubro de 1975.
Você já tinha ouvido falar nesse tipo de lugar. O chachoalhar do carro rumo à zona rural só confirmou que você iria sofrer mais – que iria morrer. Não estavam te levando para uma delegacia, onde bem ou mal alguém poderia te ver e lembrar de você. Estava caindo nos braços clandestinos do horrendo regime militar.
Existiam dezenas de lugares como esse. Eram os centros clandestinos de tortura. Ao mesmo tempo em que o governo militar começava a falar em abertura, os milicos e policiais civis usaram esses lugares para seguir com seu velho método de fazer as coisas. Em meados da década de 70, o governo falava em acabar com as torturas, e os “teatrinhos” foram banidos: aquelas cenas de falso tiroteio armadas para encobrir a morte de gente que fora na verdade morta sob tortura (era assim que os policias chamavam a encenação descarada).
Nos centros clandestinos, torturava-se em segredo, e não raro se sumia com os corpos. Muitos dos desaparecidos da ditadura brasileira passaram por eles.
Ali, fora do aparato oficial, podia-se massacrar ao ar livre. No seu caso, a tortura usava o que o sítio tinha a oferecer: as árvores, o açude, os dois lagos.
Segundo: a sufocação. Eles te levam para um córrego raso, com pedras no fundo. Ali, soltam água de uma espécie de reservatório e você é jogado para baixo, ralando nas pedras as feridas do corpo. Terceiro: a “piscina”, como eles chamam, na verdade um poço lamacento onde te afogam segurando sua cabeça. Quarto: a árvore. Pendurado pelos pés, você recebe socos, choque elétricos. Um químico é jogado sobre seu corpo, arde. Seus gritos se misturam ao de outras pessoas, que você ouve estarem sendo torturadas – homens, mulheres.
Um dia, te tiram dali, apressadamente. Dizem que seu sumiço foi denunciado no congresso nacional e na assembléia do Rio de Janeiro. Vão ter que te liberar. Seu martírio acaba numa casa, na periferia de uma cidade. Um médico o visita diariamente, para assegurar que você estará “apresentável” quando for solto. No dia 22 de outubro de 1975, finalmente você tira o capuz.
O seu nome é Affonso Celso Nogueira Monteiro. Em 2011, aos 89 anos, os olhos ainda ficarão opacos quando lembrar daqueles dias e o seu corpo, envelhecido, guardará ainda todas as marcas. Você é o único prisioneiro que saiu com vida da Fazenda 31 de Março – nome do sítio clandestino de tortura, uma homenagem à data do golpe militar de 1964.
Quarenta anos depois, a fazenda continuará lá, com a mesma cara, esquecida pelo tempo, escondida numa estrada de terra no bairro de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, bem na divisa com Itanhaém e Embu-Guaçu.
Muitos não tiveram a mesma sorte. Antônio Bicalho Lana e sua companheira Sônia Moraes, ambos da guerrilha Ação Libertadora Nacional (ALN), foram assassinados no sítio em 1973. Depois, foram levados até o bairro de Santo Amaro, onde se encenou um tiroteio – mais um dos “teatrinhos”. Foram enterrados em vala comum. Ali também mataram o líder estudantil Antonio Benetazzo, em 1972, preso na Vila Carrão, norte de São Paulo. A versão oficial, veja, é depois de preso ele teria se jogado sob as rodas de um caminhão. Foi enterrado como indigente.
Fagundes, o “pacificador” 
O sítio 31 de março é a prova de que existia uma rede de locais clandestinos de tortura no Brasil nos anos 70. Mas, como grande parte da história da ditadura militar brasileira, jamais se investigou como e quando foram usados.
No Brasil, diferente de países vizinhos como Chile e Argentina, jamais um único militar foi punido pela tortura sistemática adotada pela ditadura. Naqueles países, lugares como esse viraram museus, memoriais às vítimas, marcos históricos para que o passado não volte.
Os sítios da tortura só eram possíveis por causa do apoio de civis, gente endinheirada que apoiava a ditadura e emprestava seu imóveis para a repressão. Nenhum deles jamais foi levado à justiça.
O “dono” do sítio 31 de Março era um empresário mineiro, Joaquim Rodrigues Fagundes. Acusado de grileiro, ele se apossou da terra nos primeiros anos da década de 70. Chegou tocando o terror: junto com capangas, exibiam armas de uso exclusivo das Forças Armadas, invadiam a casa de moradores, chegaram a surrar um deles para que “desse o fora”, como se dizia na época.
Fagundes se gabava de ser amigo do “pessoal do Doi-Codi”, a central militar que comandava a repressão. Seu caseiro na época, Alcides de Souza, reconheceu que ele emprestava o sítio para os milicos fazerem treinamento. “Tem vez que chegam aqui dois mil homens – acampam, correm pra cá, pra lá, dão tiros, cortam a mata”, disse.
Fagundes era dono da Transportes Rimet Ltd, na Moóca. Sua empresa não fazia muita coisa. Tinha um único cliente, a estatal Telesp – Telecomunicações de São Paulo, que na época controlada pelos militares do governo paulista. Ali na Moóca, era sempre visto acompanhado pelos bravos amigos de farda, como o coronel Erasmo Dias, conhecido por tere invadido a universidade católica (PUC) e metido ferro nos estudantes. Ele mesmo ia uma vez por semana até a sede do Doi-Codi, na rua Tutóia. “Ele tinha autoridade, andava com os milicos”, lembram os vizinhos.
Quando não tinha ninguém gemendo ou sufocando, a turminha de Fagundes usava o sítio para churrascos e almoços festivos. Vinham nomes como mesmo Erasmo Dias, bem como o Coronel Brilhante Ustra, cujo comando do Doi-Codi foi marcado por mais de 500 denúncias de tortura, e o delegado da policia civil Sérgio Paranhos Fleury, que comandava esquadrões das morte antes da diutadura, e o massacre dos opositores depois. Só a nata da repressão. “O Fleury era amigão da gente” lembra Alcides, o caseiro.
  
A ajuda de Fagundes foi reconhecida. Em 30 de junho de 1977, recebeu a Ordem do Mérito do Pacificador, por “serviços prestado ao país”. O mineiro tinha tanto orgulho da sua ligação com o exército que, logo abaixo da placa com o nome da fazenda 31 de Março colocou outra, dizendo: “proprietário: pacificador Fagundes”.
Jamais foi militar, jamais teve um cargo oficial. E jamais foi chamado a prestar contas pela sua atuação.
Pelo contrário. Em 1984, recebeu uma comenda do Exército, tornando-se, oficialmente, “comendador”, título que consta ainda hoje na sua lápide no Cemitério da Quarta Parada, zona leste de São Paulo. O país agradece.
Por Natalia Viana, da Pública, com Tony Chastinet e Luiz Malavolta

 

 

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