quarta-feira, 18 de abril de 2012

Antropóloga revela facetas da atuação de juízes durante a ditadura militar argentina

Fonte: Unisinos

18 de Abril de 2012

“Enquanto acima (nos tribunais) rejeitavam os habeas corpus, abaixo (na “morgue”) ordenavam enterrar os corpos destes mesmos que haviam sido rejeitados”, acentuou uma advogada, numa das entrevistas que María José Sarrabayrouse Oliveira realizou para sua pesquisa. O livro “Poder Judicial y Dictadura: El caso de la morgue” é o resultado de sua tese de doutorado. Nele, a partir da análise de um concreto processo judicial, a antropóloga aborda o comportamento dos diferentes atores judiciais, durante o terrorismo de Estado, e as relações que condicionaram suas práticas. Além de fazer uma configuração histórica, ela estabelece três grupos entre os magistrados: os orgânicos, os independentes e os adaptados.

A entrevista é de Victoria Ginzberg, publicada no jornal Página/12, 15-04-2012. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Como começa a sua pesquisa?
Ela é produto da minha tese de doutorado. Minha tese de licenciatura foi sobre a implementação dos julgamentos orais na Justiça nacional. Uma das coisas que me chamou a atenção, como pesquisadora, era que em diferentes personagens do Poder Judiciário surgia a ideia de que “antes, o Poder Judiciário não era assim”. Diziam que havia baixado muito o nível e explicavam que isto acontecia devido à chegada “menemista” (Carlos Menem). A acusação estava em que nomeavam pessoas que vinham de fora, que não eram os “nyc” (nascidos e criados). Comecei a perceber que entre os que eles supunham que valiam, das pessoas da família judiciária, muitos haviam ingressado ou feito sua carreira durante a ditadura. A partir daí, veio-me a ideia de averiguar o que aconteceu com a Justiça durante a ditadura. Cruzou na minha vida a causa da “morgue” judiciária, uma denúncia do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais) à raiz de que pela “morgue” passaram desaparecidos sem a intervenção de um juiz competente, e por ordem de forças militares. No processo estava envolvido o presidente da Câmara do Crime e, por isso, vários juízes se eximiram de intervir.

 
E o que você encontrou? Como se pode caracterizar o comportamento do Poder Judiciário durante a ditadura?
As ações da Justiça foram, em geral, cúmplices. Acredito, também, que esta cumplicidade teve suas nuanças, e tento explicar isto a partir de três grupos: os adaptados, os orgânicos e os independentes. Houve diferentes responsabilidades. E tinham juízes e funcionários do judiciário que atuaram de forma independente. Este é o caso de Carlos Oliveri, que é quem termina levando o caso da “morgue”, produzindo a prova pelo desaparecimento de Norberto Gómez, que é o que, por sua vez, permite a abertura do caso da “morgue”.

Ou seja, que havia rachaduras por onde avançar, embora com limitações.
Totalmente. Tinham coisas que podiam custar a sua vida, mas neste caso, por exemplo, deixou-se a prova sobre um crime assentada num documento público e isso, depois, serviu para uma série de questões. Depois, tiveram claros colaboradores e, por outro lado, esse grande mundo cinzento dos que corriam para um lado ou para o outro... Acredito que o Poder Judiciário tem muito disso, de “adaptação ao meio”. Em relação aos empregados, eram pessoas que viviam disso.

Os médicos fizeram as autopsias que permitiram estabelecer que não aconteceram enfrentamentos, mas, que os assassinatos foram à queima-roupa. Foi um ato de independência ou produto não desejado da burocracia?
É complicado. Quando se lê os depoimentos dos médicos, no expediente administrativo feito à Corte, nos depoimentos anteriores a 30 de outubro de 1983, eles contam que fizeram seu trabalho, sem maiores detalhes. A posteriori, logo depois que fizeram a revolução. Eles mesmos diziam “se não tivesse sido por nós que deixamos o registro, não se saberia sobre isso”. Está correto. Serviu o que fizeram, porém, não sei se foi intencional. Eu penso que se curaram na saúde. Disseram “eu cumpro com minha tarefa”.

Durante a investigação de Oliveri, descobriu-se que houve um acordo do presidente da Câmara do Crime com as autoridades militares.
Tem a ver com essa ideia de que a ditadura criou um Poder Judiciário. O que a ditadura fez, foi montar-se sobre uma estrutura preexistente e utilizá-la em função de seus interesses. Para isso, teve que tirar pessoas, fazer desaparecer pessoas, colocar em cana outros. O que também teve que fazer – e isto mostra o encontro entre o presidente da Câmara do Crime, Mario Pena, e o coronel Roberto Roualdés – é negociar. Quando, em 1971, com o “Camarón” (a Câmara Federal na Penal) se arma um foro antissubversivo, não precisam buscar pessoas de fora, integram-se com a Justiça e são pessoas de renome e com muito poder. Quando assume Cámpora e se revoga o “Camarón”, deram a seus membros uma aposentadoria antecipada. E são os que voltam em 1976.

Atualmente, existem várias pesquisas sobre a cumplicidade dos juízes. Você acredita que a “família judiciária” segue operando ou aconteceu uma ruptura nos laços de lealdade?
Penso que a distância ajuda para que se possa pesquisar. Porém, segue sendo um assunto difícil. Para além das amizades de um juiz com outro, existe algo corporativo, ainda que haja muito mais críticos. Nos casos em que a cumplicidade foi flagrante, talvez não existam problemas, porém, quando o assunto não é tão óbvio, existem problemas. Porque as lealdades não são entre pessoas, são entre grupos. Pertencer a certo grupo, certo setor, o respeito tido a certas pessoas na academia. Sobre Pena, muitos de meus entrevistados diziam “que barbaridade o caso da ‘morgue’”, porém “era um tipo muito afável, muito simpático, um fã do River, muito querido na faculdade”. Acredito que a família judicial segue operando.

No livro, surge uma espécie de naturalização, na Justiça, sobre o que acontecia na ditadura. Como se fosse normal que entrasse grande quantidade de cadáveres jovens na “morgue”, que não interviesse um juiz, que os militares tinham tomado o controle do que a Justiça deveria fazer.Existe uma questão que se relaciona com qualquer instituição, não somente com a Justiça. Giddens fala de “consciência prática”, que é a forma como o indivíduo funciona cotidianamente, sem ter uma reflexão absoluta sobre o que faz. Porém, mesmo que tenha uma consciência prática, isso não significa que não tenha uma consciência reflexiva: se lhe perguntarem por que você faz determinada coisa, você pode responder. Acredito que, aqui, operava a consciência prática, num contexto de terror. Sabemos quais são as novas regras e pensamos que, neste estado de exceção, este é o funcionamento. E não existiam grandes questionamentos. É a lógica do “eles farão algo” e funciona como uma justificativa, como a daquele que vê que sequestraram seu vizinho. Não é quem denuncia, mas olha para outro lado e se autojustifica. Acredito que houve muito disso por parte dos juízes. É certo, também, os juízes viram um monte de coisas que não dizem. Tinham coisas que estavam fora do cotidiano e eles optaram por naturalizar.

Porém, um juiz não é como qualquer vizinho, ele possui outras responsabilidades.
Claro. E circula por lugares diferentes, possui acesso à informação que outros não têm e possui mais poder do que qualquer filho do vizinho. Então, aquilo como “não me dei conta, não sabia o que estava passando” é relativo, mas, pode-se pensar na naturalização, no sentido em que pensavam que certos valores estavam bem.

E como você enxerga, agora, o Poder Judiciário? Segue priorizando os adaptados?Acredito que sim. Porém, de qualquer maneira, há um ativismo judiciário interessante. Há figuras interessantes. Porém, há muitos adaptados.

Pode-se, também, pensar que o Poder Judiciário, como outras instituições, é produto de seu contexto histórico?Porém, é demasiadamente produto, muito produto.

Sobre o processo da “Morgue” Judiciária, em 1982, o CELS denunciou que, entre 1976 e 1980, a “morgue” havia realizado autopsias, entendido atestados de óbitos e ordenado o enterro de vários cadáveres, de desaparecidos, por ordem das forças militares e sem a intervenção de um juiz competente. O processo foi iniciado a partir de dados que surgiam dos levantamentos sobre o desaparecimento do médico Norberto Gómez, que havia sido feito pelo juiz Carlos Oliveri.
Durante a investigação do processo da “morgue”, soube-se que o presidente da Câmara do Crime, de que dependia a “morgue”, havia chegado a um acordo com o coronel Roberto Roualdés, responsável do comando da subárea da Capital Federal, para que a “morgue” se ocupasse dos cadáveres que os militares deixavam. Os médicos realizavam as autopsias, que estabeleciam que os mortos tinham sido assassinados à queima-roupa, e, depois, as remetiam à Justiça militar.

Quando o CELS denunciou os fatos da “morgue”, que envolviam a Câmara do Crime, vários juízes se eximiram de levar adiante o caso, que, finalmente, ficou sob a responsabilidade do próprio Oliveri.

Em outubro de 1985, Mario Pena, então presidente da Câmara do Crime, foi processado por violação dos deveres de funcionário público, porém, depois o processo prescreveu. De sua parte, a Corte Suprema levou adiante um recurso administrativo sobre o assunto.

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