terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Atas expõem caça às bruxas em universidade

17 janeiro de 2010

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-arquivadas/29045-atas-expoem-caca-as-bruxas-em-universidade

Em uma reunião da Comissão Especial de Investigação Sumária da UFRGS, o professor Laudelino Teixeira de Medeiros, da Faculdade de Filosofia, lamentou a possível não punição de "subversivos". Ele disse, conforme a ata: "Sinto que pessoas que manifestamente, até por escrito, tiveram participação condescendente e até promotora de atos de subversão ficam fora do jogo".

A reportagem é de Mário Magalhães e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 17-01-2010.

O presidente da comissão, Nagipe Buaes, da Faculdade de Ciências Econômicas, pediu: "Não poderia Vossa Excelência dar, por conseguinte, em caráter secreto, a esta presidência, os nomes dessas pessoas a fim de que elas possam ser arroladas, sem revelar de onde emanou a fonte de informação?"

Laudelino se antecipara, mas nomeou: "Eu já dei por escrito. Um nome, por exemplo, é o do professor Pery Pinto Diniz da Silva". Era o antigo vice-reitor, que renunciara após o golpe de 1º de abril de 1964.

O clima de caça às bruxas predominou no grupo nos meses seguintes à deposição do governo constitucional de João Goulart. Uma obsessão era castigar quem liberara as dependências da universidade para um evento a pedido da irmã de Jango, Neuza, casada com Leonel Brizola.

Alguns componentes pareciam se preocupar com a imagem, relativizando a atividade repressiva do órgão.

O professor Ney Messias, da Faculdade de Direito de Porto Alegre, construiu o raciocínio: "Professar ideologia não é razão para condenar. Mas fazer proselitismo com base nessa ideologia é que é delito". O incentivo à delação prevaleceu. Laudelino sugeriu que denunciantes tivessem nome preservado, para não intimidá-los. Professores e alunos acusaram colegas, porém muitos se recusaram a colaborar.

O general Jorge Teixeira manifestou atenção particular por estudantes estrangeiros que viajaram a Cuba. O 3º Exército apresentou relatório com a lista de assistentes de um curso do historiador comunista Jacob Gorender.

As atas finais da comissão não constam do arquivo de Laudelino. Não se sabe a data de conclusão dos trabalhos.

O motivo é que ele se afastou. Seu filho Luiz Inácio Franco de Medeiros contou que o motivo foi divergência com os critérios adotados.

"Ele não era de esquerda, mas não era de direita", disse o filho. "Laudelino era uma personalidade complexa", afirmou o ainda hoje professor do Instituto de Biociências da UFRGS Francisco Mauro Salzano, 81, da Academia Brasileira de Ciências. "Era um intelectual, católico e direitista muito extremo."

A Universidade de Caxias do Sul não se pronunciou sobre a posse das atas da comissão da UFRGS. Os responsáveis pelo seu centro de documentação e biblioteca, gerenciados com rigor e métodos de padrão internacional, estão em férias.

É provável que a aquisição do acervo tivesse como interesse principal os livros de Laudelino (a biblioteca da UCS reúne 950 mil volumes). Veio junto um tesouro da história.

Operação Limpeza": os afastamentos sumários de professores durante a ditadura no RS. Entrevista especial com Jaime Valim Mansan

janeiro de 2010

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/29182-operacao-limpeza-os-afastamentos-sumarios-de-professores-durante-a-ditadura-no-rs-entrevista-especial-com-jaime-valim-mansan

No começo desta semana, a Folha de S.Paulo revelou que documentos produzidos por um órgão de perseguição política criado durante a ditadura militar foram descobertos no acervo da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Esses documentos, pertencentes ao arquivo pessoal do então professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Laudelino Teixeira de Medeiros, são compostos por centenas de páginas com atas de uma Ceis (Comissão Especial de Investigação Sumária): essa comissão, instalada em maio de 1964, buscava iniciar uma "caça às bruxas", estimulando a delação na UFRGS de docentes, alunos e funcionários envolvidos em "subversão política".

Nesta entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Jaime Valim Mansan, mestre em História, relata mais detalhes desses documentos, tendo sido o primeiro pesquisador a utilizá-los como objeto de estudo, sendo a matéria-prima para a defesa de sua dissertação na PUC-RS, em 2009.

Para Mansan, o objetivo dessa comissão, revelada pelos documentos, era "afastar sumariamente (`expurgar`) das Forças Armadas e dos órgãos públicos civis que pudessem ter alguma ligação com o governo deposto e com as esquerdas em geral". Segundo o historiador, na UFRGS, os expurgos não tinham a ver com corrupção ou improbidade administrativa. "Todos foram motivados por questões político-ideológicas, ficando evidente, assim, o caráter autoritário da medida", afirma.


Jaime Valim Mansan é mestre em História pela PUC-RS e licenciado em História pela UFRGS. Com Helder Silveira e Luciano Abreu, organizou o livro "História e ideologia: perspectivas e debates" (Ed. UPF, 2009). Membro-fundador e atual vice-coordenador do GT História e MarxismoANPUH-RS, é professor de História na rede pública estadual em São Leopoldo e em escolas particulares de Porto Alegre e Cachoeirinha.


Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há poucos dias, foram revelados documentos que comprovam a existência de uma espécie de "caça às bruxas" para que professores da UFRGS fizessem a delação de colegas envolvidos com "subversão política", por meio da chamada Comissão Especial de Investigação Sumária (Ceis). Como funcionavam essa Comissão e as delações?
Jaime Valim Mansan – Após o golpe de 1964, os militares e civis que assumiram o poder instauraram no país um processo por eles chamado de "Operação Limpeza". Seu objetivo principal era afastar sumariamente ("expurgar") das Forças Armadas e dos órgãos públicos civis todos que pudessem ter alguma ligação com o governo deposto e com as esquerdas em geral. Como se sabe, além dos expurgos, foram presas milhares de pessoas, e muitas sofreram outros tipos de violência, dentre eles a tortura.

"A `Operação Limpeza` tinha o objetivo de afastar sumariamente (`expurgar`) das Forças Armadas e dos órgãos públicos todos que pudessem ter ligação com o governo deposto e com as esquerdas"

No âmbito dessa operação, em várias universidades do país as chamadas "comissões especiais de investigação sumária" foram criadas, por ordem do então Ministro da Educação e Cultura Flávio Suplicy de Lacerda. A UFRGS não foi, portanto, uma exceção. Uma das especificidades da universidade gaúcha, entretanto, foi a criação de uma comissão que contava com um representante de cada unidade de ensino. A Ceis criada na USP naquela época, por exemplo, contava com três professores, além do reitor Gama e Silva que, aliás, havia assumido o Ministério da Justiça logo após o golpe.

Outra especificidade da UFRGS foi a criação de subcomissões, pequenos grupos de dois ou quatro membros da comissão geral, organizados com o objetivo de agilizar os trabalhos de "investigação". Esse trabalho baseava-se fundamentalmente na delação, voluntária ou coagida, por parte de professores, estudantes e servidores técnico-administrativos, bem como em informações fornecidas pelo DOPS/RS (Departamento de Ordem Política e Social) e pelo III Exército.

Para isso, a CEIS/UFRGS contou, desde sua reunião de instalação e em todas as reuniões, com a participação bastante ativa do Gen. Jorge Cesar Garrastazu Teixeira, indicado pelo Comando do III Exército por solicitação do próprio ministro Suplicy de Lacerda. Como as faculdades de Direito e de Odontologia de Pelotas, que em 1969 deram origem à UFPel, eram, na época, vinculadas à UFRGS, uma subcomissão com professores de lá também foi montada e igualmente supervisionada por um "assessor militar", no caso o Cel. Bento Pena Fernandes.


IHU On-Line – Você foi uma peça chave para que esse material fosse encontrado no acervo da biblioteca da UCS. Como conseguiu encontrá-los? E como esses documentos foram parar na UCS e nunca vieram à tona antes?
Jaime Valim Mansan – Comecei a estudar esse tema dos expurgos em 2004, durante a graduação em História, realizada na UFRGS. Em 2006, creio que foi o Prof. Benito Bisso Schmidt, da UFRGS, quem me disse que estavam na UCS documentos que haviam pertencido ao Prof. Laudelino Medeiros. A valiosa biblioteca do falecido sociólogo tinha sido vendida, pela família, à universidade serrana. Junto com os livros, foram documentos. Não sabíamos o teor deles, apenas que Laudelino fora membro da comissão em 1964.

Era possível que lá houvesse algo interessante e, ainda naquele ano de 2006, estive em Caxias do Sul pesquisando no Centro de Documentação da UCS, juntamente com o Prof. Enrique Serra Padrós (na época meu orientador). Só então tomei conhecimento da existência das atas e de outros documentos relacionados à UFRGS, lá arquivados de maneira primorosa e exemplar.

"Laudelino Teixeira Medeiros foi um dos membros da CEIS/UFRGS mais ativos e mais alinhados com as diretrizes do governo ditatorial"

Isso, claro, não significa que ninguém tenha sabido daquela documentação antes de mim, no mínimo porque a competente equipe envolvida no tratamento e catalogação do acervo obviamente tomara conhecimento de seu conteúdo antes de qualquer pesquisador. Portanto, não me julgo no mérito de ser referido como pioneiro na descoberta das atas da comissão ou algo assim. Apenas fiz o que entendo que qualquer pesquisador deve fazer: segui as pistas que fui encontrando, na busca do maior número possível de fontes que pudessem ajudar a responder as questões que eu formulara sobre meu objeto de estudo.

O que ocorreu é que, até onde pude verificar, ninguém havia utilizado, antes de mim, as atas da CEIS/UFRGS em uma pesquisa acadêmica, conforme afirmei ao jornalista Mário Magalhães, da Folha de S.Paulo. A par disso, nos últimos anos, outros pesquisadores também trabalharam com aquela documentação.

Isso é extremamente saudável, tanto pela construção de diferentes perspectivas sobre um mesmo objeto, quanto pela riqueza da documentação, com potencial para embasar estudos sobre outras questões.

Exemplo disso é o caso do historiador Marcos Fontana Cerutti, que atualmente é mestrando em Educação na Unisinos. Com orientação da Profª Beatriz Daudt Fischer, Cerutti pesquisa sobre os estudantes que foram investigados pela CEIS/UFRGS (o alvo da comissão não era apenas os professores, mas também os estudantes e os servidores técnico-administrativos).


IHU On-Line – Os documentos pertenciam ao sociólogo Laudelino Teixeira de Medeiros, um dos 15 docentes da comissão de denúncia. Quem era Laudelino e qual a sua importância dentro desse contexto de delações?
Jaime Valim Mansan – Laudelino Teixeira Medeiros foi professor de Sociologia na UFRGS, sendo considerado por muitos como um pioneiro nessa área aqui no Estado. Das 43 entrevistas que realizei, ao longo da pesquisa, com atores daquele processo, em inúmeras há referências a Laudelino como um estudioso bastante reconhecido em sua área de atuação e, politicamente, um conservador convicto. Foi um dos membros da CEIS/UFRGS mais ativos e mais alinhados com as diretrizes do governo ditatorial.

"Na UFRGS, não houve um expurgo sequer promovido por corrupção ou improbidade administrativa. Todos foram motivados por questões político-ideológicas"

Há um pequeno equívoco quanto à composição da CEIS/UFRGS. Ela foi formada por 14 docentes, cada um representando uma congregação da universidade, organizados em três subcomissões em Porto Alegre e uma em Pelotas. Havia a intenção de criar uma quinta subcomissão, em Porto Alegre, para investigar especificamente os funcionários da Reitoria, mas não foi possível encontrar provas de sua instalação. Ao longo das "investigações" da comissão, três docentes foram substituídos por motivos diversos. Portanto, 17 docentes da UFRGS passaram pela comissão, além dos dois "assessores militares" que supervisionavam os trabalhos em Porto Alegre e Pelotas e da participação eventual do reitor José Carlos Fonseca Milano.


IHU On-Line – Afirma-se que, no total, foram 41 os professores cassados. Esse número procede? Qual era o perfil desses professores? O que aconteceu com eles a partir das denúncias, em termos de "resposta" por parte da ditadura?
Jaime Valim Mansan – Esse número corresponde ao total de expurgos que pude contabilizar ao final de minha pesquisa. Corresponde ao somatório dos casos verificados em 1964 e 1969. É possível, portanto, embora improvável, que outros casos ainda não tenham sido descobertos.

É importante diferenciar os expurgos de 1964 dos ocorridos em 1969, tanto pelo modo como foram promovidos quanto pelo perfil dos atingidos. De 1964 para 1969, a cúpula ditatorial adquiriu experiência e transformou-se, em parte devido ao crescente fortalecimento da chamada "linha dura". Transformações semelhantes ocorreram no aparato repressivo, que se complexificou e cresceu bastante.

Devido a isso, se em 1964 haviam sido instauradas comissões nas universidades, em 1969 o MEC possuía a CISMEC (Comissão de Investigação Sumária do MEC), órgão interno ao ministério que cumpria a mesma função das antigas comissões, só que de forma muito mais centralizada.

A CISMEC era alimentada com dados produzidos por órgãos de informações e de segurança, bem como por militares instalados permanentemente nas universidades. Estes compunham as "assessorias de segurança e informações" (ASI).

Na UFRGS, o Cel. Natalício da Cruz Correa respondia por tal função, tendo ocupado o cargo desde 1969, quando a ASI foi criada naquela universidade, até 1979, quando foi oficialmente extinta. Há indícios, contudo, de que o militar tenha permanecido ainda um tempo na função de modo extra-oficial, trabalhando na mesma sala que ocupara por uma década, no mesmo andar do Gabinete do Reitor. Tudo isso não constituiu especificidade da UFRGS, mas foi uma prática adotada pelos governos ditatoriais para controle político-ideológico do meio universitário em todo o país.

No que diz respeito ao processo decisório sobre quais indivíduos deveriam ser expurgados, houve na UFRGS três tipos:
  1. interno, quando a decisão coube exclusivamente a membros da universidade (um caso em 1964 e um em 1969);
  2. externo, quando a definição se deu em instituição externa, independentemente do apoio de setores da universidade na "investigação" (16 casos em 1964 e 19 em 1969);
  3. indireto, quando o próprio docente decidiu afastar-se, em função de perseguições e constrangimentos relacionados ao contexto de arbítrio e medo (um caso em 1964 e três em 1969).
É fundamental destacar ainda que, na UFRGS, não houve um expurgo sequer promovido por corrupção ou improbidade administrativa. Todos foram motivados por questões político-ideológicas, ficando evidente, assim, o caráter autoritário da medida.



 
IHU On-Line – Que outras informações relevantes esses documentos informam sobre a ditadura?
Jaime Valim Mansan – Esses documentos têm uma importância enorme para os estudos históricos, particularmente porque permitem traçar a dinâmica das relações internas à universidade, os conflitos, os diferentes modos de ação de indivíduos e grupos face a um contexto marcado pelo arbítrio, pelo medo, pela progressiva perseguição a tudo que divergia do padrão comportamental imposto pelos governos ditatoriais.

"Na UFRGS, havia professores como Laudelino Medeiros, que eram católicos fervorosos e viam a ditadura como algo válido e justificável"

Assim como houve indivíduos convictos de que o trabalho da CEIS/UFRGS era fundamental para o "bem-estar da nação" – como dizia Castello Branco, o primeiro dos ditadores – também houve diversos tipos de resistência, desde as mais tímidas até as mais apaixonadas. Quando se fala no tempo da ditadura, a primeira lembrança é a da imposição de regras abusivas por parte de um governo ilegítimo. Correto, mas como as pessoas comuns, como nós, se comportaram frente a isso? Quais foram as estratégias de sobrevivência que utilizaram? E mais: como o funcionamento de uma universidade, as relações entre seus membros – docentes, discentes e servidores técnico-administrativos – foram afetadas por aquela conjuntura atípica? São questões como essas que a documentação disponível em Caxias do Sul permite responder.


IHU On-Line – Como se dava a relação entre a Igreja e os esquemas de denúncias? Havia padres ou religiosos professores da UFRGS envolvidos no esquema?
Jaime Valim Mansan – Como se sabe, houve um setor da Igreja Católica, correspondente às instâncias hierárquicas mais elevadas, que apoiou abertamente o golpe de 1964 e, inclusive, os diversos tipos de perseguições promovidas pelos governos ditatoriais. Em sua maioria, viam aquilo como um "mal menor" face ao que entendiam como o "perigo do comunismo". A par disso, um importante setor da igreja formava a chamada esquerda católica, que também foi duramente atingida tanto em 1964 quanto depois.

Na UFRGS, havia professores como Laudelino Medeiros, que eram católicos fervorosos e viam a ditadura como algo válido e justificável. Ao mesmo tempo, lá havia docentes como Ernani Maria Fiori, fundamental referência para a esquerda católica gaúcha e importante membro da Ação Popular. É sintomático da heterogeneidade de posições assumidas pelos católicos o fato de que, em 1964, Ernani Fiori acabaria sendo expurgado por indicação da comissão na qual atuava Laudelino Medeiros.

Sobre esse assunto é interessante ver, para um plano geral, o clássico trabalho de Kenneth Serbin ("Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura"), bem como, para o caso específico da UFRGS, a dissertação de mestrado em Ciência Política de Lorena Madruga Monteiro, intitulada "A estratégia dos católicos na conquista da Sociologia da UFRGS (1940-1970)".


IHU On-Line – Pode haver outros documentos ainda perdidos em acervos pessoais de outros professores? Que perguntas ainda sem respostas eles poderiam ajudar a solucionar?
Jaime Valim Mansan – É provável. No decorrer de minha pesquisa, tive a sorte de contar com a contribuição de algumas pessoas que gentilmente me franquearam acesso a seus acervos particulares. Esse tipo de postura, contudo, é bastante raro. Muitos têm grande receio de que seus documentos sejam extraviados ou danificados. Mas essas pessoas estão no seu direito, já que se trata de documentação particular.

Diverso é o caso de documentos pertencentes ao Estado. O acervo do ex-Ministro da Educação e Cultura Tarso Dutra, localizado pelo Ministério Público em 2004, é um exemplo significativo disso. Pelo que se sabe, essa era uma prática comum até a década de 1980. Muitos políticos de vulto costumavam guardar para si, de forma preventiva, documentos relativos às suas atividades públicas.

"Na Igreja Católica, as instâncias hierárquicas mais elevadas apoiaram abertamente o golpe de 1964. Viam-no como um `mal menor` diante do `perigo do comunismo`"


IHU On-Line – Em 2009, você defendeu, pela PUC-RS, sua dissertação "Os expurgos na UFRGS: Afastamentos sumários de professores no contexto da Ditadura Civil-Militar (1964 e 1969)". Que novas luzes sua pesquisa conseguiu trazer sobre o período de repressão no Rio Grande do Sul? Como esses novos documentos podem ajudar a incrementar sua pesquisa?
Jaime Valim Mansan – As atas da CEIS/UFRGS e outros documentos disponíveis no CEDOC/UCS, juntamente com as entrevistas com os expurgados e outros tantos documentos, foram fundamentais para a realização da análise que apresentei na primeira parte da dissertação, focada nos processos de 1964. Dentre o que entendo que sejam as principais contribuições do estudo que desenvolvi, destaco:
  1. ter evidenciado que (e como) a especificidade dos afastamentos sumários de docentes da UFRGS ocorridos durante a ditadura esteve na interação entre as correlações de forças interna e externa à referida universidade;
  2. ter traçado um perfil político-ideológico dos docentes sumariamente afastados, demonstrando a heterogeneidade do conjunto dos indivíduos e grupos atingidos e a ampliação do espectro ideológico dos expurgados de 1969 em relação aos de 1964;
  3. ter indicado as formas repressivas utilizadas em 1964 e em 1969, seus critérios, métodos e quais instituições foram responsáveis por sua aplicação.
Também foi possível esclarecer questões que, até então, permaneciam duvidosas, como, por exemplo, no caso do expurgo do Prof. Angelo Ricci, que pude demonstrar ter sido causado unicamente por sua atitude quando da ocupação da Faculdade de Filosofia por centenas de estudantes, em junho de 1968. Ricci, que era diretor daquela unidade de ensino, não permitiu que forças do aparato repressivo invadissem a universidade para desmobilizar os estudantes. Isso custou seu afastamento sumário e, segundo contam os que com ele conviveram depois, ele nunca conseguiu se recuperar daquele golpe, falecendo em um acidente automobilístico em 1977.


O texto integral da dissertação está disponível em Domínio Público (www.dominiopublico.gov.br) e no sítio da biblioteca da PUC-RS (www.pucrs.br/biblioteca).
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)



Comissão da Verdade começa a investigar igrejas na ditadura

9 de novembro de 2012

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515335-comissao-da-verdade-comeca-a-investigar-igrejas-na-ditadura

A Comissão Nacional da Verdade realizou ontem, em São Paulo, a primeira reunião do novo grupo de trabalho que vai investigar a atuação das igrejas cristãs - católicas e protestantes - durante a ditadura militar (1964-1985).

Coordenado pelo membro da Comissão Nacional da Verdade Paulo Sérgio Pinheiro, o grupo pretende investigar tanto casos de apoio e colaboração com o regime como de resistência à repressão. No encontro de ontem, foi definido o cronograma de trabalho para os próximos meses.

A reportagem é de Patrícia Britto e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 09-11-2012.

A mobilização para apurar a atuação das igrejas ocorreu após o depoimento do ex-preso político Anivaldo Padilha - pai do ministro da Saúde, Alexandre Padilha- à Comissão Nacional da Verdade, em setembro. "A comissão não havia percebido até então que gente das igrejas fazia o jogo dos órgãos da repressão", diz o professor Leonildo Silveira Campos, da Universidade Metodista de São Paulo, um dos integrantes do novo grupo.

Em fevereiro de 1970, Anivaldo foi preso após ser delatado por um pastor e um bispo da Igreja Metodista que frequentava em São Paulo. Na época, ele dirigia o Departamento Nacional de Juventude da igreja e participava da Ação Popular, movimento da esquerda cristã.

Em 1971, Anivaldo se exilou e só voltou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia. Havia deixado no país a mulher, grávida de Alexandre Padilha, que só conheceu o pai aos oito anos de idade.

O ex-preso político também é um dos integrantes do grupo de trabalho que vai apurar a atuação das igrejas. Ele diz acreditar que haverá resistência às investigações.

Além de casos como o de Anivaldo, o grupo pretende investigar episódios como o fechamento de escolas com orientação religiosa, demissão de professores e perseguição a grupos religiosos.

Comissão terá acesso a papéis de chefe de órgão da ditadura

Terça, 20 de novembro de 2012

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/515658-comissao-tera-acesso-a-papeis-de-chefe-de-orgao-da-ditadura

Documentos de um coronel reformado do Exército que foi morto neste mês em Porto Alegre serão usados pela Comissão da Verdade na investigação de dois casos simbólicos da ditadura militar: a morte do deputado cassado Rubens Paiva (1929-1971) e o atentado no Riocentro, em 1981.

Os papéis foram entregues pela família do coronel Júlio Miguel Molinas Dias, 78, morto a tiros por desconhecidos quando chegava em sua casa no último dia 1º, à Polícia Civil gaúcha. A polícia ainda não sabe os motivos e os autores da morte do coronel.


A reportagem é de Rubens Valente e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 20-11-2012.

Dias comandava o DOI-Codi - um dos principais centros da repressão militar à esquerda armada - do Rio na época do caso Riocentro.

Os documentos ainda não foram tornados públicos. A Folha apurou que os papéis incluem um termo do Exército que confirma a apreensão de objetos pessoais de Rubens Paiva no DOI-Codi.

Também trazem um relato manuscrito do coronel sobre o Riocentro e duas guias de entrada e saída de material explosivo do Exército na época do atentado.

Uma bomba explodiu acidentalmente dentro de um carro ocupado por dois militares, no momento em que ocorria um show de música em homenagem ao Dia dos Trabalhadores.

As investigações indicaram que um grupo de militares da extrema-direita planejava um atentado durante o evento.

O promotor de Justiça Militar do Rio Otávio Bravo, que investiga desde o ano passado 39 desaparecimentos de presos políticos, incluindo Rubens Paiva, disse que os documentos poderão confirmar que o ex-deputado de fato morreu sob tortura do Estado, como dizem testemunhas.

E também apontar um dos agentes da repressão que manteve contato com ele ainda em vida.

"Temos demonstrações de que ele [Paiva] esteve no DOI-Codi, mas por prova testemunhal, não por documento oficial", disse o promotor.

Uma das filhas de Rubens Paiva, Vera, disse que a informação "é extremamente importante". "A gente começa a ter uma pista a mais do que tínhamos até hoje."

O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, reforçou que os papéis podem reafirmar por meio documental que Paiva morreu nas mãos do Estado.

A versão que o Exército apresenta desde o desaparecimento é a de que o ex-deputado foi resgatado quando era levado para reconhecer um local no subúrbio do Rio.

Em janeiro de 1971, Rubens Paiva trabalhava como engenheiro no Rio quando foi procurado em sua casa por agentes que se diziam da Aeronáutica e levado até o prédio do DOI-Codi, na Tijuca. Nunca mais foi visto pela família.

Os papéis do coronel foram entregues pela família ao delegado Luis Fernando Martins Oliveira. Ele afirmou que está examinando os documentos, que têm cerca de cem páginas, e disse que os colocará à disposição da Justiça.

Após a entrega das informações, equipes do Exército foram à casa da família Dias no dia 8 e, segundo versão dita à época, levaram armas de uma coleção do coronel. O Exército não se manifestou ontem, feriado militar.

A Comissão da Verdade informou que pediu ao governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), acesso aos documentos.

Na semana passada, dois representantes foram a Porto Alegre, onde tiveram contato parcial com os papéis.

Sobrevivente dos anos de chumbo. Depoimento e apelo. Entrevista com Anivaldo Padilha

Terça, 04 de dezembro de 2012

http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516008-a-historia-de-um-sobrevivente-dos-anos-de-chumbo-entrevista-com-anivaldo-padilha

“Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania”, diz o sociólogo e membro do grupo de trabalho constituído pela Comissão Nacional da Verdade que investiga o papel das igrejas durante a ditadura militar.
Confira a entrevista.

Depois de ter tido sua história de vida marcada pelas torturas da ditadura, Anivaldo Padilha acaba de encerrar um ciclo, após o julgamento de seu caso na Comissão de Anistia. “No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada”, disse à IHU On-Line.

Líder da juventude metodista e do movimento ecumênico de juventude no Brasil e na América Latina durante os anos 1960, Padilha lutou contra a opressão e pela democracia. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele resgata essa história e diz que na prisão conheceu o “lado mais cruel e diabólico do ser humano”, mas também “o lado mais sublime, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite”. E complementa: “Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir”.
Quase 50 anos depois, Padilha avalia que a situação do país melhorou, especialmente no âmbito jurídico-institucional. “Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços, mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual”, conclui.

Anivaldo Padilha
é formado em Ciências Sociais e membro da Igreja Metodista. Esteve exilado por 13 anos no Chile, EUA e Suíça. De regresso ao Brasil, em 1984, incorporou-se ao Centro Ecumênico de Documentação e Informação – CEDI. Em 1994, participou da fundação de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço. É membro da equipe de assessores de KOINONIA, membro da Diretoria do Conselho Latino-Americano de Igrejas (Região Brasil) e da Junta Diretiva do Church World Service, dos Estados Unidos e mora em São Paulo.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em maio deste ano, o senhor recebeu indenização da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pelos graves danos que lhe foram causados na época da ditadura. Como se sente diante desta decisão?

Anivaldo Padilha –
Com muita sinceridade, devo dizer que o aspecto mais importante da anistia é o caráter político da decisão, e não a indenização que vou receber. Nunca lutei por dinheiro e, sim, pela democracia.

A sessão da Comissão de Anistia na qual meu caso foi julgado representou um momento ímpar para mim. Eu já havia assistido a algumas sessões da Comissão e já conhecia o ritual. No momento em que o último membro da Comissão emitiu o seu voto, todos se levantaram, o presidente da Comissão Dr. Paulo Abraão pronunciou o veredito unânime e, em nome do Estado brasileiro, pediu desculpas pelas violações dos meus direitos. Nesse momento, fui tomado por uma grande emoção. Senti que a minha dignidade como cidadão estava resgatada. Naquele momento compreendi o significado simbólico daquele gesto que eu já havia presenciado em outras ocasiões, mas não tinha ainda noção do que representava para uma pessoa que teve seus direitos violentamente agredidos por uma política de terror oficialmente executada pela ditadura.

Ao mesmo tempo, senti que, apesar de tudo e de todos os problemas que enfrentei, a minha luta e a de todos que lutaram contra a ditadura valeu a pena. A Anistia, para mim, marcou o encerramento de um ciclo importante da minha vida, mas, acima de tudo, representa estímulo e incentivo para o início ou continuidade um novo ciclo sem, contudo, significar mudança de rumos ou de lados. Se antes a luta foi contra a ditadura, hoje é a luta pelo aprofundamento da democracia que conquistamos até agora. Ou seja, vejo a construção da democracia como um processo permanente e sinto-me feliz por fazer parte desse processo.


IHU On-Line – Na época em que foi preso e torturado, qual era sua atuação na Ação Popular – AP e na liderança ecumênica jovem?

Anivaldo Padilha
– Como militante da AP eu atuava no movimento estudantil (cursava Ciências Sociais na USP) e me dedicava ao trabalho de conscientização e de organização de setores da classe média. Ao mesmo tempo, trabalhava na Igreja Metodista como diretor do Departamento Nacional de Juventude e editor da “Cruz de Malta”, uma revista publicada por essa igreja e dirigida especificamente ao público jovem. Eu era também o secretário, para o Brasil, da União Latino-americana de Juventudes Ecumênicas.

Sempre procurei separar minha militância política na AP da minha participação e atuação na igreja e no movimento ecumênico apesar de que, em muitos casos, havia certa coincidência. Por exemplo, a defesa dos direitos humanos, a oposição à ditadura, a crítica às estruturas injustas da nossa sociedade e os esforços para a superação das desigualdades econômicas e sociais no Brasil eram bandeiras ecumênicas que em grande parte coincidiam com as posições políticas dos diversos movimentos que se opunham à ditadura. Meu trabalho eclesial e ecumênico envolvia a promoção de reflexões bíblico-teológicas, produção de materiais educativos visando a formação ecumênica da juventude não só metodista mas de outras igrejas também, o envolvimento de jovens em projetos sociais e o incentivo à solidariedade com pessoas perseguidas pela ditadura.

Já minha atuação na AP envolvia esforços que visavam a construção de apoios políticos e logísticos para a ação política da AP. Era um trabalho clandestino e muito arriscado, realizado com muita dificuldade pois a ditadura impedia qualquer tipo de oposição aberta.

 
IHU On-Line – Como o senhor descreve os 20 dias em que ficou preso no DOI-CODI, respectivamente Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna?

Anivaldo Padilha
– Somados os três períodos em que estive no DOI-CODI e os em que estive no DEOPS, entre o final de fevereiro o final de junho, foram três meses de terror. O período mais difícil foi no DOI-CODI porque os interrogatórios acompanhados de torturas foram diários durante cerca de três semanas. E as torturas não eram somente físicas. Eram acompanhadas de torturas psicológicas para quebrar a resistência do prisioneiro. Por exemplo, ficar em uma cela suja, dormindo no chão em um colchão também sujo, sem possibilidade de fazer a higiene pessoal, como tomar banho ou escovar os dentes, sem ter como trocar de roupa, uma só refeição diária que no início era composta de restos do jantar do quartel do exército e posteriormente uma marmita fornecida pelo Grupo Ultra. Juntamente com esse tratamento vinham os insultos constantes dos carcereiros e dos membros da guarda. Vivi essa situação durante o primeiro período de cerca de vinte dias em que estive no DOI-CODI. A ditadura sabia que é muito difícil para uma pessoa manter o senso de dignidade diante de uma situação como essa. Entretanto, creio que todos nós, prisioneiros, tínhamos consciência de que a prisão era também uma frente de luta e que era necessário reunir todas as forças interiores que tínhamos para resistir.

Lado mais cruel e diabólico do ser humano


Sempre digo que conheci na prisão o lado mais cruel e diabólico do ser humano. É quando o mal que temos dentro de nós assume o controle total dos nossos atos e passa a agir com total liberdade. É quando o mal se instala de forma absoluta. Pude vivenciar isso na ação dos torturadores, mas não era algo simplesmente individual. É claro que alguns deles se moviam por sentimentos de extremo sadismo, mas é possível até que alguns deles fossem meigos com seus amigos e familiares. Entretanto, ali no DOI-CODI, tornavam-se possuídos pelo poder de vida ou de morte que tinham sobre nós, pois tinham consciência de que estavam executando uma política de Estado. Sabiam que a tortura não era somente uma técnica sistemática de interrogatório, mas, acima de tudo, um instrumento de terror usado para intimidar a sociedade. Não se sentiam pessoalmente responsáveis e acreditavam na impunidade.

O lado mais sublime do ser humano

Ao mesmo tempo, conheci o que considero o lado mais sublime do ser humano, que é a capacidade de ser solidário em situações-limite como a que na qual nos encontrávamos. Essa solidariedade se manifestava de várias formas: nas palavras de incentivo e de encorajamento quando um de nós era levado para interrogatório ou quando regressava das sessões de torturas e necessitava de cuidados; no respeito às diferenças político-ideológicas que havia entre os prisioneiros; na manifestação concreta do amor ao próximo que atingia o ponto máximo na capacidade de doação da própria vida como aconteceu com vários de nossos companheiros e companheiras. Tudo isso contribuiu para que muitos de nós pudéssemos descobrir e encontrar dentro de si aquela força para resistir que muitas vezes não pensávamos possuir. Não quero fazer uma análise maniqueísta e reduzir essa experiência a uma luta entre o bem e o mal, mas o fato objetivo é que naquela situação as fronteiras entre um e o outro se tornavam muito claras para nós e isso nos ajudava a discernir claramente de que lado deveríamos estar e encontrar forças para não nos rendermos.
 

IHU On-Line – Que sentimento o senhor guarda em relação ao pastor metodista José Sucasas Jr. e o bispo Isaías Fernando Sucasas, já falecidos, que lhe denunciaram?

Anivaldo Padilha
– É importante esclarecer que as denúncias feitas pelo bispo Isaias Fernandes Sucasas e seu irmão pastor José Sucasas Jr. contra mim não foram a causa imediata da minha prisão. Fui preso juntamente com uma companheira de militância, Eliana Rolemberg, quando fomos à casa do tio de dois jovens da Igreja Metodista retirar um pacote de documentos que eles haviam deixado lá para nós. O tio deles abriu o pacote, considerou o material subversivo e chamou o DEOPS, na época comandado pelo infame delegado Sérgio Fleury. Os sobrinhos não sabiam que o tio deles era informante do DEOPS. Durante uma das sessões de torturas por que passei, enquanto eu negava ser comunista e membro de uma organização clandestina, uma dos torturadores me disse: “Você quer que acreditemos em você ou naquele pastor que afirma que você é comunista?”. Naquele momento não consegui saber o nome do tal pastor. Ouvi essa mesma pergunta várias vezes depois e não tenho dúvidas de que a delação foi uma das causas para a intensificação das torturas que sofri.

Foi somente há cerca de seis anos que descobri que não era um, mas dois pastores que me haviam denunciado. As denúncias foram feitas por escrito nas margens de uma cópia do “Unidade”, um jornal artesanal da juventude metodista que eu editava e que era bastante crítico da liderança conservadora da Igreja.

As denúncias dos irmãos Sucasas foram enviadas ao escritório do Serviço Nacional de Informações – SNI em São Paulo. Esse documento consta do conjunto de documentos a meu respeito que estão hoje no Arquivo do Estado de São Paulo. E há cerca de três anos descobri que ambos eram informantes do DEOPS. Um estudante que estava trabalhando em sua dissertação de mestrado teve acesso ao diário do bispo Sucasas e nele encontrou dois registros, feitos em 2008. No primeiro, o bispo narra que ele e seu irmão foram ao DEOPS e se colocaram à disposição para colaborar com a repressão. No segundo registro, feito alguns dias depois, ele descreve a segunda visita que ele e seu irmão fazem ao DEOPS para retirar suas respectivas carteiras de informantes.

É interessante registrar que eles não sabiam do meu envolvimento com a Ação Popular. Fica claro nas anotações que fizeram nas margens do jornal que a delação praticada por eles estava relacionada aos conflitos internos na igreja entre os setores progressistas, principalmente a juventude, e os setores conservadores. Em outras palavras, usaram a delação aos órgãos de repressão da ditadura como um meio de repressão contra a juventude da Igreja Metodista.

Fantasma das torturas

Não sei dizer exatamente o que sinto hoje sobre eles. Com eu já afirmei publicamente em outras ocasiões, durante muito tempo, no meu período de exílio, fui perseguido pelo fantasma das torturas. Depois de muito esforço consegui perdoar os torturadores e também os que me denunciaram. A partir daí os pesadelos desapareceram. Foi um processo terapêutico para mim, uma forma que encontrei de vencê-los. Já disse também que há situações em que o perdão é mais importante para quem perdoa do que para quem é perdoado. Mas isso, em minha opinião, só faz sentido no âmbito subjetivo, nas relações interpessoais. No âmbito político, essas pessoas têm que ser responsabilizadas judicialmente porque seus crimes não foram somente contra os presos políticos individualmente, mas principalmente contra a sociedade brasileira. E a sociedade tem o direito e a obrigação de responsabilizá-los judicialmente.

 
IHU On-Line – Como o senhor se sentiu ao partir para o exílio com a esposa grávida, sendo obrigado a ficar distante da família, sem conviver com seu filho – hoje o médico Alexandre Padilha, ministro da Saúde? Quais as principais consequências que esse processo gerou para o senhor e sua família?

Anivaldo Padilha
– Após conseguir liberdade condicional, permaneci no Brasil vivendo na clandestinidade durante cerca de cinco meses. Nesse período vivi com o auxílio do Conselho Mundial de Igrejas. Isso me possibilitou retomar contatos com meus companheiros da AP, especialmente com minha companheira (não éramos casados) que também estava na clandestinidade. Nesse período ela ficou grávida. Foi um período muito difícil para mim. Eu estava fisicamente muito debilitado e psicologicamente abalado devido às condições precárias da prisão e às torturas que havia sofrido. Não podia conseguir emprego regular, pois as empresas exigiam atestado de antecedentes. Meu pai havia praticamente perdido a visão devido a um derrame, não tinha aposentadoria e vivia sob os cuidados da minha mãe. Eles dependiam totalmente de mim financeiramente.

Ao mesmo tempo, o cerco da repressão contra a AP e as organizações de esquerda em geral se intensificava e estava claro que se fosse preso novamente eu seria morto, pois essa tinha sido a ameaça que sofri por parte do capitão Homero, um dos torturadores, quando saí da prisão. Durante esse período de clandestinidade, agentes do DEOPS foram à casa dos meus pais por duas vezes para me prender. No final de abril de 1971, fui convencido de que não havia mais possibilidades de eu permanecer no Brasil.

Dívida

Só eu sei a angústia que senti ao ter que deixar minha companheira, grávida de três meses, sabendo que ela também corria riscos de ser presa, torturada e talvez assassinada juntamente com nosso filho que ainda estava por nascer. Meu filho nasceu enquanto eu estava no exílio! Esse é um dos traumas profundos que ainda me perseguem, pois só pude conhecê-lo, abraçá-lo e conversar com ele quando ele estava com oito anos, quando vim ao Brasil logo após a assinatura da Lei de Anistia para, então, formalmente reconhecer a sua paternidade e fazer seu registro de nascimento. Só pude conviver com ele, em uma relação de pai/filho, depois de regressar ao país definitivamente em outubro de 1983.

Eu disse em várias ocasiões que essa é uma dívida que a ditadura tem para comigo e com todos nós e que nunca poderá ser paga. A dívida só não é maior porque minha companheira (por quem tenho o maior respeito e admiração) e minha mãe tiveram sempre o cuidado de explicar para ele os motivos por eu não estar no Brasil. Ele cresceu sabendo que eu estava distante, mas não ausente. Durante esse período, apesar de todas as dificuldades de comunicação e os necessários cuidados com a segurança, houve trocas de mensagens entre nós, algumas por fitas cassetes e desenhos, outras por fotos. E o mais salutar disso foram as trocas de comunicação entre o Alexandre e os meus dois filhos (Celso e Paulo) que nasceram no exterior. A amizade entre eles é muito grande e há claramente um clima de admiração mútua entre eles.

 

IHU On-Line – De que maneira o senhor relaciona a ditadura militar com os mais de três séculos de escravidão?

Anivaldo Padilha
– Creio que há vários pontos que estabelecem uma íntima relação entre a ditadura e o nosso passado escravagista. Poderia mencionar vários, mas vou citar somente dois. Um é o profundo preconceito social e racial que ainda prevalece entre setores importantes e poderosos da elite brasileira. Alguém disse (não lembro quem, neste momento) que a nossa elite saltou de uma sociedade escravagista para a modernidade sem passar pela Revolução Francesa, ou seja, não sofreu o impacto dos valores republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade; esses preconceitos têm se traduzido, em vários momentos da nossa história, em verdadeiro ódio de classe. Basta ver como esse ódio e esses preconceitos são (re) produzidos em alguns meios de comunicação atualmente; é uma elite que nunca se educou pelos valores humanistas de verdade e por isso é incapaz de conviver com a democracia e usa de todos os meios para criminalizar qualquer movimento social que possa representar uma ameaça, mesmo que remota, aos seus interesses; uma decorrência natural dessa mentalidade é tratar qualquer questão social como caso de polícia, seja em questões ligadas ao mundo do trabalho, moradia ou até saúde pública, como temos visto na cidade de São Paulo ultimamente com a violência policial contra usuários de crack; essa elite sabe exatamente o que a escravidão representou e por isso sempre tratou de mistificá-la nos livros escolares. A abolição da escravatura no país é apresentada como um ato de benignidade de uma representante da nobreza e com isso trata de apagar a memória dos horrores que a escravidão representou para uma parcela enorme da população brasileira no passado e suas consequências para seus descendentes. Eu diria que essas são as raízes ideológico-culturais da enorme desigualdade social que caracteriza a sociedade brasileira.

O outro é o também profundo desrespeito à dignidade humana que se traduz na perpetuação da violência das nossas polícias contra os pobres e o uso sistemático dos diferentes métodos de tortura. Antes era usada contra os escravos que se atreviam a transgredir a ordem estabelecida pelo sistema escravagista e, posteriormente, foi aprimorada para uso contra dissidentes políticos, como aconteceu durante a ditadura civil/militar. Hoje, continua a ser usada contra prisioneiros nas delegacias e prisões.

 
IHU On-Line – O que lhe motiva, mesmo depois desta experiência, a assumir a condição de protestante e de líder ecumênico latino-americano?

Anivaldo Padilha
– O que me motiva hoje são os mesmos princípios protestantes e ecumênicos que me levaram a me engajar na luta por uma sociedade mais justa e democrática, inicialmente como parte dos movimentos pelas reformas de base no período anterior ao golpe de estado de 1964 e, posteriormente, na luta contra a ditadura. Sou ecumênico porque sou protestante. Devido à minha formação protestante, desde muito jovem compreendi os limites da Igreja institucional e sei que ela é repleta de contradições, para dizer o mínimo. A história do cristianismo nos mostra que foram poucos os momentos em que ele – o cristianismo – realmente foi fiel aos princípios do Evangelho e aos valores do Reino de Deus. Na maior parte das vezes, os grupos dominantes na Igreja-instituição se aliaram aos poderes dominantes do mundo na manutenção do status quo. Ao mesmo tempo, sempre houve minorias que procuraram ser fiéis à tradição bíblica profética na qual o movimento de Jesus se insere. E, para mim, o movimento ecumênico é parte dessa tradição. É um movimento que, por sua própria natureza, tende a ser transgressor e a constantemente desafiar as igrejas. É essa natureza do movimento ecumênico que me motiva e dá sentido ao meu envolvimento político e eclesial na luta constante pela defesa, promoção e garantia dos direitos humanos, sociais, econômicos, culturais e ambientais.

 

IHU On-Line – Quais são hoje os principais desafios que envolvem a luta contra as violações de direitos humanos no Brasil?

Anivaldo Padilha
– Os desafios são muito grandes e multifacetados, pois a garantia e defesa dos direitos humanos envolvem várias frentes de luta que estão relacionadas: econômicos, sociais, culturais e ambientais. Por isso, sem desprezar as outras frentes, vou me concentrar na questão da violência que hoje ocupa grande parte da agenda nacional.

Uma das heranças mais perversas da ditadura, perpetuada e disseminada pelo oligopólio da mídia sensacionalista, é que a defesa dos direitos humanos significa uma ameaça à ordem estabelecida. Na época da ditadura, quem defendia os direitos humanos era identificado na mídia como protetor de “terroristas” e não como defensores da democracia. Hoje, somos acusados de defender bandidos e não como defensores da justiça para todos os cidadãos e cidadãs. Enquanto isso, as ações das polícias militares e de milícias nas periferias das grandes cidades e de pistoleiros a serviço de fazendeiros continuam a assassinar, impunemente, lideranças comunitárias, camponesas e indígenas. Apesar da existência de um número cada vez maior de organizações da sociedade civil que têm na promoção e na garantia de direitos uma de suas prioridades, ainda não conseguimos inverter a balança de poder. E esse desequilíbrio se manifesta em praticamente todas as esferas da sociedade, incluindo aquelas instituições que, por sua natureza, supostamente deveriam ter outra compreensão, como igrejas e universidades. Essa é uma luta ideológica que temos que travar todos os dias. É uma luta desigual como sempre foi (e provavelmente sempre será) porque os instrumentos que possuímos são frágeis e enfrentamos poderosos meios de comunicação que estão a serviço da manutenção do status quo – e aqui me refiro tanto à grande mídia tradicional quanto aos blogs e redes de direita na internet.

Arcabouço jurídico de garantias

Creio que temos tido vários avanços, especialmente no âmbito jurídico-institucional. Conseguimos, no período pós-ditadura, construir um arcabouço jurídico de garantias e de proteção aos direitos humanos (Dhesca). Entretanto, paralelamente a esses avanços mantivemos estruturas e instituições construídas durante nosso passado autoritário. As polícias civil e militar permanecem intocadas. O Estado se mostra incapaz de cumprir seu papel de forma adequada, tanto no plano federal quanto no estadual. Por exemplo, nem o governo federal nem aqueles governos estaduais que sabemos ter compromissos com os direitos humanos até agora foram capazes de promover uma reforma profunda no sistema de segurança pública com a formação de uma polícia unificada focada numa política de prevenção, de inteligência e de proteção da sociedade. Ao contrário, a ênfase tem sido na ação das polícias militares. Como sabemos, a PM é uma invenção da ditadura, criada sob a ideologia de segurança nacional para a luta contra o “inimigo interno”. Ela é treinada para matar e não para proteger a sociedade. Uma nova política de segurança e uma nova polícia já representaria um grande avanço em direção à proteção de direitos. Mas sabemos que dificilmente chegaremos lá sem a mobilização da sociedade.


 

IHU On-Line – Como se sente tendo sido vítima de sofrimento do regime militar, num período sombrio da nossa história, das lutas pela construção de um Brasil mais justo e democrático?

Anivaldo Padilha
– Sou grato por ter pertencido a uma geração, ou melhor, a uma parte da minha geração que não se calou diante da tirania. No fundo, me considero não um privilegiado, mas um dos sobreviventes dos anos de chumbo que percebe na memória da passagem pelo vale das sombras da morte, como diria o salmista, a força para olhar o futuro com esperança e reconhecer que tudo valeu a pena.

 
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do trabalho que vem sendo feito pela Comissão Nacional da Verdade? Considera-a um avanço ou pensa que ela já nasce limitada? Possibilitará romper a impunidade que se impôs sobre os anos de chumbo com a Lei da Anistia?

Anivaldo Padilha
– Eu preferia uma Comissão Nacional da Verdade – CNV mais robusta, com prazo mais longo para executar seu trabalho, com orçamento próprio e com autoridade para recomendar ao Ministério Público o indiciamento dos agentes do Estado que cometeram crimes de violação dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, sabia que um CNV no Brasil só seria constituída por meio de negociações políticas que levassem a uma decisão consensual – e foi o que ocorreu. Ela não poderá propor indiciamentos; outro limite é o prazo com que ela trabalha, pois terá que apresentar seu relatório final até maio de 2014. E terá que dar conta de várias frentes de investigação. Para poder cumprir com essa tarefa monumental, a CNV tem estabelecido relações com centros de pesquisa e com organizações da sociedade civil que já têm pesquisas acumuladas sobre a ditadura. Alguns estados e municípios também estão criando suas comissões da verdade como um meio de colaborar com a CNV. Essas parcerias e iniciativas que se desenvolvem como uma forma de suprir o que parece ser um limite da CNV pode muito bem se transformar em um de seus aspectos muito positivos, que é a participação de setores da sociedade e a de ampliação do seu impacto.

Entranhas dos porões da ditadura

Já sabemos muito sobre o que aconteceu durante a ditadura e sobre o papel que muitas instituições e setores da sociedade desempenharam naquele período. Entretanto, há ainda muito a se descobrir e também muito a se comprovar. Creio que ao expor publicamente as entranhas dos porões da ditadura e mostrar como a repressão se estruturou, qual a sua linha de comando, como atuou, quem apoiou e quem foram seus agentes, dificilmente a CNV deixará de causar um impacto positivo. Por exemplo, creio que seu relatório contribuirá para fortalecer a necessidade de o Brasil intensificar a discussão sobre a necessidade de se remover os resquícios autoritários tanto ideológicos quanto institucionais que herdamos da ditadura, aquilo que Ulisses Guimarães chamou de entulho autoritário. Um desses entulhos é a interpretação da Lei de Anistia pelo Supremo Tribunal Federal – STF, interpretação que dá continuidade à tradição brasileira de impunidade e de acordo entre as elites.

Minha esperança é que, além de produzir um relatório robusto e inquestionável sobre os crimes cometidos durante a ditadura, a CNV produza na sociedade o sentimento de que seu trabalho não se refere somente ao passado, mas, acima de tudo, aponta para o futuro a fim de que aquele passado nunca mais se repita.

 

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Anivaldo Padilha
– Sim, gostaria de dar uma informação e de fazer um convite, quase um apelo. Quero informar que a CNV decidiu investigar o papel das igrejas durante a ditadura. Um grupo de trabalho já foi constituído. Ele é formado por pesquisadores que já têm trabalho acumulado nesse campo. Tenho a honra de compartilhar a sua coordenação com o Paulo Sérgio Pinheiro, membro efetivo da CNV. Pretendemos nos concentrar em quatro áreas:
1) o papel das igrejas na preparação do golpe;
2) papel que desempenharam na legitimação e consolidação da ditadura;
3) a colaboração de setores das igrejas com a repressão; e
4) resistência de setores das igrejas à ditadura e repressão sofrida por grupos dissidentes internos.

Como sei que grande parte dos leitores desta publicação estão no mundo acadêmico e ou têm relações com o campo religioso, aproveito para solicitar a colaboração no sentido de me enviar informações que possam contribuir para o trabalho do GT. Desde já agradeço e disponibilizo meu email aqui: apadilha@distopia.com.


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