sábado, 30 de março de 2013

Brasil extradita argentino acusado de tortura

Extraído de: Espaço Vital  - 28 de Março de 2013


 
O argentino Cláudio Vallejos, condenado por tortura e sequestro de pessoas durante a ditadura de seu país (1976-1983), foi transferido anteontem (26) à noite da prisão onde estava, em Lages (SC), para o Aeroporto Hercílio Luz, em Florianópolis.

De lá, ele seguiu ainda na madrugada de ontem (27 para a Argentina, custodiado por policiais argentinos, em voo comercial. A autorização para extradição foi dada pelo STF em setembro, mas só agora a transferência foi concretizada.

EBC
Tenorinho acompanhava Vinicius de Moraes em shows em Buenos Aires
Cláudio Vallejos, de 54 anos, estava detido por estelionato desde o dia 4 de janeiro no presídio regional de Xanxerê (SC). Na ocasião, a Polícia Federal solicitou ao governo argentino informações para saber se Vallejos era suspeito de crimes da época da ditadura em seu país - o que foi confirmado logo depois pela Interpol.

Um dos casos em que ele teve envolvimento direto foi a prisão e o desaparecimento, em 1976, do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenorinho, que se apresentava na capital argentina acompanhando Vinicius de Moraes. Tenorinho saiu do hotel para comprar cigarros e ir a uma farmácia, e não voltou. Seu corpo nunca foi encontrado.

Vallejos foi preso por estelionato em várias cidades do oeste catarinense. Ele se apresentava como jornalista, prometia fazer um jornal ou vender assinaturas, cobrava, mas não entregava nem o serviço e nem o produto.
Apesar de ter seu nome na lista da Interpol, Vallejos vivia no Brasil desde 2003.


Como foi a decisão do STF
Por unanimidade, a 2ª Turma do STF deferiu parcialmente, em 18 de setembro do ano passado, pedido do governo da Argentina para extraditar Cláudio Vallejos, acusado de tortura, homicídio, sequestro qualificado e desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura militar naquele país.

Os crimes teriam sido cometidos entre 1976 e 1983, época em que Vallejos era militar do Exército argentino e atuava na Escola de Mecânica da Armada Argentina (ESMA), conhecido centro clandestino de detenção durante a ditadura.

O relator, ministro Gilmar Mendes, iniciou seu voto reconhecendo que a Argentina é competente para julgar o caso, considerando o local dos fatos e a nacionalidade do acusado, nos termos do artigo , letra a, do Decreto nº 5.867/2006.

O ministro destacou, ainda, que os fatos descritos no processo de extradição encontram correspondência no Direito Penal brasileiro, com exceção do crime chamado desaparecimento forçado de pessoas.

Nessa hipótese, o relator adotou entendimento firmado em outro processo (Extradição nº 974), em que o STF considerou a dupla tipicidade com base no delito de sequestro, em razão de a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas ainda não ter sida ratificada pelo Estado brasileiro.

Ao analisar o argumento de prescrição levantado pela defesa, o ministro lembrou que a Argentina incorporou em seu ordenamento jurídico a imprescritibilidade dos crimes relativos ao desaparecimento forçado de pessoas e às privações ilegítimas de liberdade.

E acrescentou que, embora o Brasil não tenha ratificado as convenções que tratam da imprescritibilidade, dada a natureza permanente do crime de sequestro, o prazo de prescrição somente começa a fluir a partir da cessação da permanência do crime. Nesse sentido, o ministro citou jurisprudência do STF segundo a qual nos delitos de sequestro, quando os corpos não forem encontrados, em que pese o fato de o crime ter sido cometido há décadas, na verdade está-se diante de um delito de caráter permanente, com relação ao qual não há como assentar-se a prescrição.

No entanto, Mendes destacou que estão prescritos, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, os crimes de tortura e homicídio, uma vez que já se passaram mais de 20 anos da data dos fatos. Por essa razão, o relator ponderou que a extradição deve ser deferida somente em relação aos crimes de sequestro e desde que o governo da Argentina assuma o compromisso de comutar eventual pena de prisão perpétua em pena privativa de liberdade, com o prazo máximo de 30 anos. (Ext nº 1278).

Documentos da ditadura estarão disponíveis na internet a partir de segunda

Extraído de: Agência Brasil  - 29 de Março de 2013

Ivan Richard
Repórter da Agência Brasil


Brasília - Os arquivos e prontuários do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo, (Deops), órgão de repressão do país no período da ditadura, poderão ser acessados na internet a partir da próxima segunda-feira (1º). Ao todo, cerca de 1 milhão de páginas de documentação foram digitalizadas.

O trabalho é resultado da parceria entre a Associação dos Amigos do Arquivo Público de São Paulo e o projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

De acordo com o Ministério da Justiça, as informações, além de serem um importante registro histórico, poderão facilitar o trabalho de reparação feito pela Comissão de Anistia, uma vez que poderão ser usadas como ferramenta para que perseguidos políticos consigam comprovar parte das agressões sofridas.

A digitalização dos documentos foi feita em dois anos e deve continuar até 2014. Para a realização do trabalho, a Comissão de Anistia transferiu mais de R$ 400 mil à Associação de Amigos do Arquivo. Em dezembro de 2012, o Ministério da Justiça autorizou novo repasse, de mais R$ 370 mil, para digitalização de outros acervos.

A cerimônia de lançamento do portal na internet está marcada para a próxima segunda-feira, as 10h30, no Arquivo Nacional de São Paulo.
 

Edição: Juliana Andrade
Todo o conteúdo deste site está publicado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil. Para reproduzir as matérias é necessário apenas dar crédito à Agência Brasil

quinta-feira, 28 de março de 2013

Relembre: editorial de O Globo celebra golpe militar de 1964

pragmatismopolitico

Postado em: 26 mar 2013 às 20:33

A história inabalável: Editorial do jornal “O Globo” de 2 de abril de 1964, celebrou o Golpe Militar

Leia a seguir, na íntegra, o posicionamento histórico e irreparável do jornal da família Marinho durante o processo que removeu, à força, um governo democraticamente eleito e instaurou uma ditadura militar no Brasil. Na foto abaixo, a capa do jornal O Globo, celebrando o “ressurgimento da democracia”, um dia após o Golpe Militar.
Editorial de “O Globo” do dia 02 de abril de 1964


Capa do jornal O Globo, celebrando o “ressurgimento da democracia”, um dia após o Golpe Militar. (Reprodução)
 
“Ressurge a Democracia”
Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem. Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.

Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ser a garantia da subversão, a escora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade, não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada.

Agora, o Congresso dará o remédio constitucional à situação existente, para que o País continue sua marcha em direção a seu grande destino, sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam, sem que o poder do Estado volte a ser usado em favor da desordem, da indisciplina e de tudo aquilo que nos estava a levar à anarquia e ao comunismo.

Poderemos, desde hoje, encarar o futuro confiantemente, certos, enfim, de que todos os nossos problemas terão soluções, pois os negócios públicos não mais serão geridos com má-fé, demagogia e insensatez.

Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. Devemos felicitar-nos porque as Forças Armadas, fiéis ao dispositivo constitucional que as obriga a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem, não confundiram a sua relevante missão com a servil obediência ao Chefe de apenas um daqueles poderes, o Executivo.

As Forças Armadas, diz o Art. 176 da Carta Magna, “são instituições permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade do Presidente da República E DENTRO DOS LIMITES DA LEI.”
No momento em que o Sr. João Goulart ignorou a hierarquia e desprezou a disciplina de um dos ramos das Forças Armadas, a Marinha de Guerra, saiu dos limites da lei, perdendo, conseqüentemente, o direito a ser considerado como um símbolo da legalidade, assim como as condições indispensáveis à Chefia da Nação e ao Comando das corporações militares. Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei.

Atendendo aos anseios nacionais, de paz, tranqüilidade e progresso, impossibilitados, nos últimos tempos, pela ação subversiva orientada pelo Palácio do Planalto, as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.

Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas. Era a sorte da democracia no Brasil que estava em jogo.

A esses líderes civis devemos, igualmente, externar a gratidão de nosso povo. Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. É da Pátria, do Povo e do Regime. Não foi contra qualquer reivindicação popular, contra qualquer idéia que, enquadrada dentro dos princípios constitucionais, objetive o bem do povo e o progresso do País.

Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos. Confiamos em que o Congresso votará, rapidamente, as medidas reclamadas para que se inicie no Brasil uma época de justiça e harmonia social. Mais uma vez, o povo brasileiro foi socorrido pela Providência Divina, que lhe permitiu superar a grave crise, sem maiores sofrimentos e luto. Sejamos dignos de tão grande favor.”

Pragmatismo Politico, com Acerto de Contas

terça-feira, 26 de março de 2013

Guatemala. “O Exército aguardava que fôssemos ao campo para, então, violar e matar as mulheres”



unisinos

No terceiro dia do julgamento por genocídio do ex-presidente Efraín Ríos Montt, os sobreviventes de massacres perpetrados pelo Exército contra a população civil desarmada continuaram narrando, na quinta-feira, dia 21, o horror vivido durante a guerra civil que ensanguentou o país centro-americano entre 1960 e 1996 e, especialmente, durante o mandato de Ríos Montt (1982-83). No primeiro plano, o principal imputado escutava, tieso como um manequim e sem mostrar emoção alguma, os relatos da selvageria com que as tropas sob seu comando massacraram comunidades rurais indígenas inteiras.

A reportagem é de José Elías e publicada no jornal espanhol El País, 21-03-2013. A tradução é do Cepat.

“Meu pai tinha 82 anos quando foi assassinado. Encontrei-o estirado em uma casa vizinha. Seu corpo estava coberto de sangue”, contou Diego Velásquez, que, às perguntas da juíza, precisou que o assassinato ocorreu no dia 20 de julho de 1982. Não pôde precisar se havia sido vítima das balas dos soldados ou se havia sido morto a facadas. “Só lembro que estava coberto de sangue”, disse através de um intérprete.

Juan López Mateo, sobrevivente de uma matança em uma aldeia de Nebaj (departamento de Quiché, ao norte do país), perdeu a sua família no dia 02 de setembro de 1982. Salvou a vida porque havia saído muito cedo para a milpa (plantio do milho). “Quando voltava para casa escutei o pranto de uma criança, o que me alertou que algo ruim estava acontecendo”, narrou. Conforme se aproximava do povoado, “escutei tiros. Eram cerca das 10 horas da manhã”, disse. Conseguiu chegar à sua casa pelas três horas da tarde, quando os solados já tinham ido embora. “Na minha casa encontrei os cadáveres da minha mulher e de meus filhos, de cinco e dois anos”, contou com a voz entrecortada. Perguntado se havia visto mais pessoas assassinadas, limitou-se a responder que “eram muitas”, mas que 31 anos depois não podia arriscar um número. Recordou que um de seus filhos havia sido asfixiado com uma corda e outro estava com a cabeça destroçada a golpes. Os soldados também queimaram a casa e destruíram todos os seus bens. “Foi o Exército”, expressou sem sombra de dúvida.

Quando cheguei em casa, encontrei os meus sogros e os meus três filhos mortos. Também mataram as quatro vacas que tinha.

Outra testemunha, Pedro Álvarez Brito, contou ao tribunal que os militares assassinaram toda a sua família. “O Exército cercou a casa”. Sua irmã, “que apenas tinha dado à luz”, outro de seus irmãos pequenos e ele mesmo conseguiram refugiar-se em um “temascal” (banho maia de vapor), de onde viram como a totalidade dos moradores da aldeia foi introduzida, à força, em uma casa.

“Um dos soldados”, acrescentou, “começou a apropriar-se das galinhas e frangos da família” dona da casa. Recorda que as aves eram 60, o maior patrimônio doméstico. “Por uma infelicidade, uma das galinhas, que não se deixava pegar, se meteu no ‘temascal’”, o que fez com que ele e seus irmãos fossem descobertos e levados, também à força, à casa. “Depois queimaram a casa”, contou Brito. O relato de outros sobreviventes abundou nessa imagem: que os soldados jogaram gasolina nas casas e meterem fogo para queimar as pessoas vivas.

“Não sei como fiz, mas consegui fugir do meio das chamas e me refugiei sob uma árvore. Assim estive escondido como um animal encurralado, por oito dias, sem comer nem beber. Nu e sem abrigo”. Como os militares haviam assassinado os seus pais e seus irmãos maiores, ficou sozinho. “Agora só peço justiça, para que meus filhos não sofram uma experiência semelhante”, concluiu.

Particularmente cruéis foram os testemunhos sobre os ataques perpetrados a partir de helicópteros. “Atiravam contra tudo o que se movia. Assim morreram indiscriminadamente crianças, mulheres e anciãos”, narrou uma mulher septuagenária.

Atiravam de helicópteros contra tudo o que se movia. Assim morreram indiscriminadamente mulheres, crianças e anciãos.

Em Villa Hortensia de San Juan Cotzal (Quiché), “no dia 10 de setembro de 1982 entraram os militares. Levaram todos os moradores e queimaram as casas. Meu pai, Nicolás Gómez, foi dos que morreram nesse dia”, relatou Inés Gómez. Na mesma incursão, o Exército matou toda a família de outro dos sobreviventes: “Quando cheguei na minha casa, encontrei os meus sogros e meus três filhos mortos. Também mataram as quatro vacas que tinha”.

Pedro Meléndez tinha 10 anos em 1982, quando presenciou o assassinato de seu pai e tio. “Meu pai – disse no tribunal – morreu baleado. Ao meu tio lhe cortaram o pescoço com uma faca”. O drama não terminou nesse momento. Os sobreviventes buscaram refúgio nas montanhas, onde viu morrer de fome os seus irmãos, de cinco, três e um ano de idade.

As denúncias se repetem e todas concordam em descrever um mesmo padrão no ataque. Mudam apenas o lugar e a data. “Creio que o Exército, que nos vigiava, aproveitava que os homens saíam para os trabalhos agrícolas para entrar na aldeia, violar e matar as mulheres”, disse Juan López Matón, que pontualizou que muitos daqueles que conseguiram refugiar-se nas montanhas morreram de fome, “pois os soldados queimavam as plantações”.

O processo, para o qual a promotoria apresentou 205 testemunhos entre peritos e testemunhas, continuará até que o último deles preste declarações. O fato de que os sobreviventes, indígenas, não falem espanhol contribui para a lentidão do julgamento.

Um processo histórico na América Central

Efraín Ríos Montt, de 86 anos, converteu-se no primeiro ex-chefe de Estado centro-americano julgado por genocídio.

— Para levá-lo à justiça foi preciso esperar até o ano passado, quando Ríos Montt deixou de ser parlamentar: a imunidade parlamentar o protegeu durante anos de responder pelas atrocidades cometidas durante seu mandato, entre 1982 e 1983.

— Militar de carreira, Ríos Montt renunciou ao Exército para concorrer às eleições presidenciais de 1974, nas quais ficou em segundo lugar. Imbuído de um messianismo de requintes milenaristas – marca da Igreja evangélica pentecostal que abraçou em 1978 –, exercia trabalhos de evangelização quando o golpe militar de março de 1982 lhe ofereceu uma oportunidade para chegar ao poder.

— Nos apenas 17 meses que presidiu o país, a violência ensanguentou as zonas rurais. O Exército e os paramilitares executaram uma política de terra queimada com matanças generalizadas de camponeses e indígenas considerados próximos à guerrilha da Unidade Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG), sobretudo nos departamentos de Quiché e Huehuetenango.

Ríos Montt, que ilustrava seus discursos com citações bíblicas, jactou-se da repressão armada como o método expeditivo mais eficaz para privar os insurgentes de sua base popular. “O bom cristão”, disse certa vez, é aquele que brande “a Bíblia e a metralhadora”.

— O ex-presidente é acusado pelo assassinato de ao menos 1.771 indígenas da etnia maia ixil. A promotoria o acusa também de tolerar a prática generalizada de violações, torturas e incêndios provocados contra propriedades de insurgentes.

— Cerca de 200.000 civis, a maioria indígenas de ascendência maia, foram assassinados entre 1960 e 1996 na guerra civil de uma sucessão de Governos de direita contra guerrilhas de inspiração comunista. Cerca de 45.000 pessoas desapareceram nesse período.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Comissão apura empresas perseguidas na ditadura



unisinos

Às 20 horas do dia dez de fevereiro de 1965, o comissário de voo Cláudio Araújo foi surpreendido em casa pela notícia dada no rádio pelo Repórter Esso: estava fechada a Panair do Brasil. Três horas antes, a informação chegou à sede da companhia por um telegrama assinado pelo então presidente Castello Branco. A maior empresa aérea do país na época teve as concessões dos voos cassadas pelo regime militar. Araújo era um dos cinco mil funcionários da companhia que ficaram desempregados.
A reportagem é de Guilherme Serodio e publicada pelo jornal Valor, 25-03-2013.

A falência da Panair foi tema de audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV), realizada no sábado, no Rio. O evento inaugurou uma nova linha de investigação do grupo: as empresas perseguidas pela ditadura. No cerne das investigações está o que Rosa Maria Cardoso da Cunha, líder do grupo de trabalho da CNV que investiga a participação de empresários no golpe de 1964, classificou como um processo de deslocamento de poder para o favorecer empresários alinhados com o regime. "Há teses acadêmicas que mostram como grupos empresariais emergiram e como outros foram deslocados de suas posições. Vamos relatar isso", disse Rosa.

Pesquisadora da CNV, a historiadora Heloísa Starling afirmou ao Valor que "cerca de 60 das principais entidades empresariais do Brasil estiveram envolvidas na gênese do golpe de 1964". Mas lembra que houve empresários prejudicados porque não se identificaram com a ditadura ou mantinham negócios que estavam fora dos interesses do regime. É o caso da indústria têxtil mineira, onde mais de 90 empresas faliram nos primeiros anos do regime mesmo tendo apoiado o golpe.

O caso da Panair, segundo Rosa, mostra que as violações se deram além de mortes e torturas, com ações contra empresários que apoiaram governos como o de Juscelino Kubitschek ou João Goulart.

Agora, a CNV quer ouvir relatos sobre outros empresários perseguidos pelo regime. Casos de ao menos outras cinco empresas prejudicadas pela ditadura já chegaram à comissão. Mas Rosa acredita que haja um número maior e cita a TV Excelsior, cuja concessão foi encerrada em 1970, como um caso que pode ser analisado. A Excelsior era de Mario Wallace Simonsen, sócio da Panair.

"Queremos caracterizar se houve perseguição efetiva, se houve processos contra empresários, como houve na Panair", disse Rosa.

Fundada em 1929 como a norte-americana Nyrba, a Panair foi subsidiária da Panam até ter 100% de seu capital adquirido em 1961 pelos brasileiros Celso da Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen, próximos a Juscelino Kubitschek.

Nos meses seguintes à cassação das concessões da Panair, 18 ex-funcionários morreram. "O comissário Guido, chefe dos comissários no Rio, ficou tão desesperado que botou a cabeça no forno e se suicidou com gás", disse o ex-comissário Araújo, um dos cerca de 200 ex-funcionários e familiares que foram à audiência.

A falência da Panair favoreceu a Varig, de Rubem Berta, que assumiu as principais rotas da concorrente no mesmo dia em que o governo cassou as concessões da Panair. Alinhada ao regime, a Varig ajudou no transporte de militares na articulação do golpe em 1964, segundo o brigadeiro João Paulo Burnier.

"O capítulo está aberto para saber quem foi beneficiado e quem foi prejudicado", diz Rodolfo da Rocha Miranda, filho de um dos sócios da Panair e autor da solicitação para que a CNV analisasse o caso. "O ressarcimento maior nosso é moral, é isso que a gente espera: o reconhecimento de que a Panair do Brasil foi fechada por interesses políticos".

Grupo investiga relatos de tortura de crianças

O  

 unisinos

Grupo de Trabalho Ditadura e Gênero, encarregado de pesquisar a violência cometida contra as mulheres por agentes de Estado, também vai investigar os casos de violências contra crianças. "Já começamos a coletar relatos de prisões e tortura de crianças", disse a pesquisadora Glenda Mezzaroba.

De acordo com suas informações, há relatos de crianças que foram levadas à prisão para verem os pais torturados. Também surgiram casos em que a violência não era tão explícita. "Quando famílias de opositores da ditadura eram banidas do País, as crianças eram fotografadas vestindo apenas calcinhas ou cuequinhas", informou. "Essas fotos, que estão sendo localizadas nos arquivos dos órgãos de repressão, são a prova de um tipo de violência que se praticava contra as criança."
A reportagem é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-03-2013.

Segundo a ex-presa política Crimeia Schmidit de Almeida, era comum a violência contra as mulheres se estender aos seus filhos.

Integrante da Guerrilha do Araguaia, Crimeia estava grávida quando foi detida por agentes da repressão, em 1972. Na quinta-feira, em depoimento perante a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, na Assembleia Legislativa, ela contou que a sua condição não impediu que fosse submetida a sessões de tortura.

"Eles me torturaram bastante, apesar da barriga grande", contou. "Um médico que dava assistência à tortura, dizia que eu aguentava, mas que não podiam bater na barriga, pendurar no pau de arara e nem dar choque na vagina. Por causa disso eu levei muito choque e pancada nas mãos, nos pés, na cabeça."

De São Paulo, Crimeia foi levada para uma prisão em Brasília, onde nasceu seu filho. Conforme seu relato, um pouco antes do nascimento, quando solicitou socorro e não foi atendida, ela disse ao obstetra de plantão na prisão: "Meu filho vai morrer." E ele teria respondido: "Não tem problema. É um comunista a menos."

Após o nascimento, relatou Crimeia, ela foi submetida durante vários dias a torturas psicológicas. "Diziam que iam mandar meu filho para a Febem e que eu nunca mais iria encontra-lo. Depois eu descobri que ele estava na enfermaria, mas dopado, com doses pediátricas de Diazepan." O filho de Crimeia sobreviveu e hoje tem 40 anos.

Comissão da Verdade vai dar ênfase à violência contra mulheres



unisinos 

A Comissão Nacional da Verdade e a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva realizam hoje, em São Paulo, um encontro aberto sobre a questão das mulheres que participaram da resistência à ditadura e das violências que sofreram. O objetivo é dar mais visibilidade ao sofrimento das mulheres diretamente envolvidas com o conflito e também daquelas cujos familiares foram perseguidos, torturados, assassinados ou estão desaparecidos até hoje.
A reportagem é de Roldão Arruda e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 25-03-2013.

A questão das mulheres também deverá ter destaque na campanha publicitária que a Comissão Nacional da Verdade deve lançar nos próximos dias para divulgar suas atividades. Um dos objetivos da campanha é estimular o depoimento de pessoas de sofreram violências e que ainda não tiveram oportunidade ou estímulo para falar.

Já se sabe, pelos trabalhos de outras comissões, em outros países, que a violência sexual sofrida pelas mulheres é um dos temas de mais difícil abordagem e exposição. Na campanha que está sendo finalizada, a comissão vai esclarecer que os depoentes podem ficar anônimos, se quiserem. O que se busca, entre outras questões, é a identificação dos autores das violências.

No final do ano passado, a comissão já havia criado o grupo temático denominado Ditadura e Gênero, para pesquisar e analisar a violência contra a mulher no período entre 1964 e 1985. Coordenadas por Paulo Sérgio Pinheiro, um dos sete integrantes da comissão nomeados diretamente pela presidente Dilma Rousseff, as atividades do grupo estão sendo levadas adiante pelas pesquisadoras Glenda Mezzaroba e Luci Buff.

Em entrevista ao Estado, Glenda Mezzaroba observou que também está sendo analisada a participação de mulheres que não se envolveram diretamente com os movimentos de oposição à ditadura, mas participaram da resistência. "As mulheres foram protagonistas na busca pela verdade, na organização de comitês de anistia, na luta por informações sobre mortos e desaparecidos", afirmou. "Quase todas tiveram de enfrentar em algum momento o aparato de repressão e sofreram algum tipo de violência, como ameaças, injúrias, humilhações."

Ela também lembrou as mulheres que tiveram companheiros e filhos presos. "Em alguns casos isso significou uma carga maior na criação dos filhos, pois tiveram de fazer isso sozinhas. Frequentemente enfrentavam humilhações nas visitas aos companheiros presos. Uma delas foi levada até a prisão para assistir à tortura do marido quando estava grávida. É um tipo de violência que não deixa marca no corpo, mas que vai ter um impacto na vida inteira", disse Glenda.

Em relação à violência sexual, a pesquisadora observou que ela vai muito além do estupro, a primeira questão levantada quando se trata do assunto. "É um tema muito mais amplo. Ficar nua diante de um grupo de homens para ser interrogada é uma violência que pode ter um impacto maior para a mulher do que para o homem", disse. "Entre as sobreviventes que passaram pelos cárceres em períodos de repressão política surgem relatos de golpes destinados a afetar a capacidade de reprodução, casos de indução ao aborto, estupros repetidos, prostituição forçada, escravidão sexual."

Sobrevivente
Na sessão que será realizada hoje à noite na Assembleia Legislativa, será homenageada a ex-presa política Inês Etienne, única sobrevivente da Casa da Morte - centro de tortura da ditadura que funcionava em Petrópolis, no Rio. A abertura será feita pela teóloga Ivone Gebara.

A ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, foi convidada e deverá participar do evento.

O Instituto Millenium, suas “aulas” de jornalismo e as lembranças

limpinho e cheiroso

Kamel, da Globo, e Serra durante debate eleitoral: mídia conservadora perdeu no campo democrático.
Organização que une empresários, imprensa e oposição ao governo lembra cenário do golpe de 1964. Seu poder de propagar intrigas e más notícias, porém, não tem sido capaz de superar a solidez e os resultados do projeto político em vigor.

Laurindo Lalo Leal Filho, via Revista Brasil Atual

O economista Cristiano Costa foi recebido em fevereiro pelo pessoal do Grupo A Tarde, em Salvador. A companhia de comunicação, que tem provedor e portal na internet, agência de notícias, jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus profissionais para servirem-se de uma palestra da série “Millenium nas Redações”. Blogueiro e professor de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é também colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”.

A base de sua explanação são seus artigos reproduzidos no site do instituto, em que critica duramente a política econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Em um deles, cita o programa Minha Casa, Minha Vida como um dos responsáveis por inflacionar o setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de imóveis de alto padrão dispararam. As pessoas estão mais seguras no emprego e foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter acesso a crédito, ou mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para investir em imóveis. Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal destinado a famílias de baixa renda pagar o pato da especulação.

Outras redações de jornais e revistas foram “brindadas” pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados, da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”. O currículo dos palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia brasileira.

Há algum tempo os ambientes de redação eram conhecidos por ter profissionais críticos, independentes, e o direcionamento da informação era resultado da sintonia dos editores com os donos dos veículos. Não era incomum a conclusão do jornal ou da revista acabar em atrito entre repórter e superiores. Agora, os donos dos veículos preferem formar “focas” que já cheguem às redações comprometidos com suas crenças.

Essas crenças, recheadas de interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira afinada pelos meios de comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto desse trabalho pôde ser visto neste início de ano. Três assuntos, alardeados como ameaças ao País, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e foram amplificados pelo rádio e pela tevê: apagão, inflação e crise na Petrobras.

Além do noticiário parcial, analistas emitiam previsões catastróficas. Como elas não se confirmavam, o assunto era esquecido e logo substituído por outro. Em 8 de janeiro, o jornal O Estado de S.Paulo estampou na capa: “Governo já vê risco de racionamento de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de S.Paulo Eliane Cantanhêde chamava uma reunião ordinária, agendada desde dezembro, de “reunião de emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico convocada às pressas por Dilma para tratar do risco de racionamento. Diante da constatação de que a reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada correção. Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco do “racionamento” desapareceu.

Pularam para o “descontrole” da política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário. “Especialistas” tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma inflação futura capaz de desestabilizar a economia. Aproveitavam para crucificar o ministro Mantega, artífice de uma política que contraria interesses dos rentistas nacionais e internacionais: a redução dos juros bancários está na raiz da gritaria.

Não satisfeitos, colocaram a Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade administrativa” dos dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos acionistas. Sem considerar que, dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de parte dos dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do país na forma de novos investimentos.


Variações de uma nota só
Aparentemente isoladas, essas versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns que permeiam as pautas dos principais veículos. No site do Instituto Millenium elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz ter como valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, Estado de direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade individual, eficiência e transparência”. Faz lembrar a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, que chegou a dizer que só o indivíduo existe, a sociedade é ficção.

Fundado em 2005, o Millenium foi oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes empresas e entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo Grupo Gerdau. Trata-se de uma liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e valores e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do País. A elas juntam-se a locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa Statoil, a companhia de papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de mídia que opera no sul do Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não aparece na lista, mas um de seus donos, João Roberto Marinho, colabora.

Essa integração entre empresas de mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de formular e difundir programas de ação política em larga escala, com maior capacidade de convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição partidária ao governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura.

Apesar do apego declarado à democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de combater o governo de qualquer forma. É o que está explícito na fala de outro de seus colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor, quando num dos eventos promovidos pelo instituto disse: “A questão é: como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?”

Essa articulação faz lembrar a de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), nascido em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora na formulação e divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964.

“Ipes e Ibad não eram apenas instituições que organizaram uma grande conspiração para depor um governo legítimo. Elaboraram um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma série de reformas no Estado para favorecer o grande capital”, lembra o pesquisador Damian Bezerra de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No cenário atual, de decadência do modelo neoliberal e de consolidação de políticas desenvolvimentistas no Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para dar combate a esse processo transformador. “Nos anos de 1990 ocorreu a disseminação da ideologia do pensamento único, de que o capitalismo triunfou, o socialismo deixou de existir como projeto político”, lembra a historiadora Carla Luciana da Silva, da Universidade do Oeste do Paraná.

“Quando surgem experiências concretas que podem desafiar essas ideias, aparece em sua defesa uma organização como o Millenium 
para manter vivo o ideal do pensamento único.”
Memórias de um golpista: Lincoln Gordon com o general Castelo Branco. A CIA patrocinou a ação de 1964.
A difusão dessas ideias não é feita por meio de manifestos ou programas partidários, como observa a pesquisadora. “É muito difícil pegar uma revista como a Veja ou um jornal como a Folha de S.Paulo e conseguir visualizar os sujeitos que estão produzindo as ideias defendidas ali. Cria-se uma imagem do tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem sujeitos com vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que projeto falam, como se falassem em nome de todos.”

Contra as versões, fatos
Conhecendo as ações do instituto e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional. E fica difícil contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas ideias.

Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?

Não é mera coincidência a preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do Brasil aos grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das relações harmônicas entre governos latino-americanos. Trata-se de uma tentativa de ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura que só passou a ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com a posse do governo Lula.

Mas parece não haver espaço para uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a professora Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de relações públicas da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos ganhos da crise política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter forçado análises e estudos em busca de explicações de como o então presidente Lula conseguiu suportar tanta notícia negativa e manter elevados índices de aprovação.

“Não era só carisma. Desde 2003, havia uma gestão de governo em funcionamento. Não existia somente aquilo de que os jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra proposta política estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os avanços sociais alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura institucional. “O Millenium é um agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates, mas não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que chega lá na ponta e inclui quem estava fora.”

Damian Melo, da UFF, tem visão semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje estratégia golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via eleitoral mesmo. Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos atentos.”

Colaborou Rodrigo Gomes
***


O Ibad como modelo
Mauro Santayana
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) foi a mais descarada forma de intervenção norte-americana no processo político brasileiro, mas não a primeira. No governo Dutra (1946–1951), o grande desembarque econômico norte-americano no Brasil, os ianques agiam com desenvoltura na vida brasileira.
 Nessa fase, denominada pelo historiador Gerald K. Haines como “americanização do Brasil”, editoriais dos grandes matutinos cariocas chegaram a ser redigidos na embaixada dos Estados Unidos.

O Ibad nasceu da esperteza de um negocista, Ivan Hasslocher. Ele criou a agência de publicidade Incrementadora de Vendas Promotion para servir como operadora do sistema e levantou milhões de dólares da CIA e de empresas norte-americanas, a fim de eleger parlamentares de direita – já no fim do governo Juscelino, em 1959. Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passou a atuar descaradamente.

Clandestinamente, o instituto financiou, com a cumplicidade do deputado de extrema-direita João Mendes, a formação de sua própria bancada de parlamentares comprometidos com sua orientação ideológica. O embaixador norte-americano no Brasil naquele período, Lincoln Gordon, confessou, depois, que a CIA fora a principal fonte pagadora de Hasslocher.

Uma CPI foi instalada em 1963 para investigar o instituto, mas não pôde ir adiante. Seus membros mais ativos – Eloy Dutra, José Aparecido de Oliveira, João Dória, Benedito Cerqueira e Bocaiuva Cunha – foram cassados em 1964. Outro membro ativo, Rubens Paiva, seria assassinado pelo DOI-Codi em 1971.
Jango foi corajoso ao suspender as atividades do Ibad duas vezes, por 90 dias, até que a Justiça mandou fechar a instituição. Mas já era tarde. Hasslocher e seus assalariados continuaram a atuar clandestinamente, em associação com o Ipes. O Ibad tinha também em sua folha de pagamentos jornalistas, sem falar na adesão “gratuita” dos donos dos grandes jornais – com exceção do Última Hora.

A Globo e a ditadura militar, segundo Walter Clark

limpinho e cheiroso

Roberto Marinho na foto da capa do livro promocional 
assinado por seu empregado Pedro Bial.
Argemiro Ferreira em seu blog, texto publicado em 3/4/2010

Ainda que não tivesse sido esse o objetivo de sua autobiografia, na qual relatou há 19 anos a incrível trajetória que o transformara no todo-poderoso senhor, por mais de uma década, da quarta rede comercial de televisão do mundo, Walter Clark acabou por oferecer no livro – O campeão de audiência, que teve o jornalista Gabriel Priolli como coautor, Editora Best Seller, 1991 – uma contribuição importante para a compreensão das relações muito especiais entre a TV Globo e o regime militar à sombra do qual floresceu. Além de rejeitar a conhecida imagem da emissora como uma espécie de porta-voz do “Brasil Grande” do ditador Médici, ele garantia nunca ter visto Roberto Marinho “se humilhar diante de quem quer que fosse, milico ou não, presidente da República ou não. Ao contrário, é uma altivez que fica sempre no limite da arrogância”.


 Clark referia-se à suposta independência do dono da Globo por “manter em torno de si homens de esquerda em cargos importantes” (citava Franklin de Oliveira, Evandro Carlos de Andrade e Henrique Caban), inclusive depois que o SNI ampliou a pressão contra os dois últimos, com acusações contidas numa fita de vídeo que o dono da Globo fora convocado a assistir em companhia de Clark e Armando Nogueira.

Explicitamente, admitia apenas que o regime “incomodava” a Globo, que enfrentou “o mesmo gosto amargo da censura, das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu: imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura”.

Claramente na defensiva, o autor mostrava-se ressentido com os que o culpavam – na própria Globo e mais até do que Marinho – pela submissão ao regime militar. Mas ao passar das opiniões subjetivas aos fatos concretos, acabava por confirmar o que pretendia desmentir: a docilidade das tevês (em particular a sua), em parte resultante do caráter precário das concessões de canais pelo governo, tinha uma longa história e já o atropelara antes, na TV Rio.

Essa emissora, na qual também foi autoridade máxima (com o título nominal de “diretor comercial”), Clark submeteu-se, sem reação, ao assalto dos lacerdistas – liderados pelo empresário Abraham Medina, fazendo valer a condição de patrocinador de programas – no episódio da tomada do Forte de Copacabana, em 1964. Posteriormente, conseguiu o prodígio de entregar-se tanto ao governo estadual como ao federal, até mesmo depois do desafio do governador Carlos Lacerda ao presidente Castelo Branco. Clark confessou ter retirado do ar programas de Carlos Heitor Cony e Roberto Campos para satisfazer o coronel Gustavo Borges, chefe de Polícia do Rio, que o chantageava com a ameaça de mudar o horário da novela “O direito de nascer”, líder de audiência.


Da promiscuidade à cumplicidade
Não por acaso, a experiência da Globo acabaria por extremar a tendência à acomodação, a ponto de Clark contratar um ex-diretor da censura (“o Otati”) para “ler tudo que ia para o ar” e, pior ainda, uma “assessoria especial” para cortejar o poder, formada pelo general Paiva Chaves, pelo civil linha-dura Edgardo Manoel Erickson (“pelego dos milicos”, conforme disse) e mais “uns cinco ou seis funcionários”. O episódio que aparentemente o convenceu a ir tão longe chegava a ser cômico: um certo coronel Lourenço, do Dentel, tinha tirado a estação do ar em 1969, convocando Clark ao Ministério da Guerra, porque Ibrahim Sued, na esperança de agradar ao Planalto, divulgara uma intriga plantada pelo grupo do general Jaime Portela, então na conspiração do “governo paralelo” juntamente com dona Yolanda Costa e Silva. Ibrahim foi preso e Clark aprendeu a lição depois de levar um pito do coronel Athos, “homem de Sylvio Frota”.

Além da pretensa altivez de Marinho, impressionaram Clark a “integridade”, a “honestidade” e o “patriotismo” do general Garrastazu Médici, que depois de 1974 passara a frequentar seu gabinete na Globo para ver futebol aos domingos. Muita gente apanhava e morria nos cárceres da ditadura, mas para ele isso não podia, de forma alguma, ser coisa do ditador Médici: “Tenho a impressão de que ele não se envolveu com nenhum excesso, nenhuma violência do regime.”

De quem era, então, a responsabilidade? “Foi coisa dos caras da Segunda Seção do Exército, do SNI, do Cenimar, do Cisa, a turma da segurança. E era tudo na faixa de major, tenente-coronel.” Pronto a absolver os poderosos, frequentadores de seu gabinete (até mesmo o general Ednardo D’Ávila‚ chamado no livro de “figura agradável”), e a condenar apenas o guarda da esquina, obscuro, Clark comete o disparate de afirmar que “a censura e as pressões não eram feitas pelos generais”, mas por “gente como o Augusto”, beque do Vasco que virou agente do Dops. Mas se era assim, por que submeter-se a eles?

O autor recorreu ainda a outra desculpa para justificar o adesismo e o ufanismo tão escancarados na ocasião pela rede dos Marinho: “A Globo não fazia diferente dos outros.” E mais: “Se o Estadão não conseguia enfrentar o regime, se a Veja não conseguia, como é que a Globo, sendo uma concessão do Estado, conseguiria resistir à censura, às pressões?” O problema, para os críticos de Clark dentro da própria emissora, é que ela, como ele, parecia preferir aquela filosofia de que se o estupro é inevitável só resta relaxar e aproveitar. Daí os comerciais da Aerp (Clark alega que foram feitos para evitar uma “Voz do Brasil” na tevê, projeto de um certo coronel Aguiar), as coberturas patrióticas de eventos militares (Olimpíadas do Exército e o resto), as baboseiras ufanistas de Amaral Neto. “Era o preço que pagávamos para fazer outras coisas”, alegou. Não se deu ao trabalho de explicar que coisas eram essas. E ele mesmo admitiu na autobiografia que o apregoado Padrão Globo de Qualidade “acabou passando por vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”.
Clark, numa capa da Veja em 1971.


A Globo devia ao regime, como ficou claro no relato de Clark, até mesmo a introdução da tevê em cores – imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do “despachante” encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa, equipamentos de tevê; e para os militares da espionagem oficial, sofisticados aparelhos de escuta ilegal. Graças a isso, Clark podia desfrutar estranhas sessões de lazer como a conversa com um tal general Antônio Marques, pressuroso em exibir foto tirada no escuro de um cinema (com equipamento infravermelho) e identificar o personagem em cena comprometedora como dom Ivo Lorsheiter, progressista odiado pela linha dura militar.


Para Armando, “uma questão de realismo”
O autor defendeu no livro tudo o que fez para “afagar o regime” (expressão dele) e investiu contra os que o acusavam de “puxar o saco dos militares” (também expressão dele). Para fazer autocensura, revelou, tinha importantes aliados internos, com destaque especial para o papel do diretor de Jornalismo, Armando Nogueira. Por “questão de realismo”, por exemplo, Armando e ele tomavam “muito cuidado” para não trombar “com o regime nem com Roberto Marinho”. Mas o leitor tropeça nas contradições da narrativa, entre elas a ambiguidade em relação ao ex-amigo J. B. (Boni) de Oliveira Sobrinho – acusado de fazer vista grossa quando Dias Gomes e outros enfiavam “coisas nos textos que certamente iam dar problemas”, mas também de cumplicidade com os militares para destruir o próprio Clark (“lá por 1976, Laís, a mulher do Boni, foi me denunciar para o pessoal do SNI, que ela conhecia, dizendo que eu era um toxicômano perigoso”).

Amoral Nato, digo, Amaral Neto, o repórter… da ditadura.


Não é preciso inteligência privilegiada para perceber que o jogo de cumplicidade com o regime confundia-se com a luta interna pelo poder dentro da Globo, arbitrada por Marinho e envolvendo não apenas Clark e Boni, mas também o segundo escalão: Joe Wallach, que representava o Grupo Time Life, segundo ele mesmo; José Ulisses Alvarez Arce; e, em especial, o diretor de Jornalismo Armando Nogueira. Esse último é pintado no livro como incompetente, preguiçoso e traiçoeiro. Em meio à guerra, as reuniões do conselho de direção nas manhãs de segunda-feira tornaram-se um inferno, em generalizado clima de intriga e discórdia, com todo mundo brigando com todo mundo. O dinheiro farto que todos ganhavam, contou Clark, “era como veneno, especialmente nas mãos das mulheres”. Munidas de talões de cheque, elas estrelavam “um festival de nouveau-richismo, pretensão e falta de educação”. Acusado de consumir drogas, Clark defendeu-se ao encarar a prática como generalizada: “A cocaína era chique nas festas intelecto-sociais e seu consumo, bastante disseminado, mas resolveram me transformar em drogado.”

Quando Marinho decidiu tomar “o brinquedo de volta” – ou seja, recuperar o controle da Globo, que “tinha emprestado para uns garotos mais moços brincarem” – uma das mãos firmemente agarradas ao tapete de Clark, segundo o livro, foi a do ministro da Justiça, Armando Falcão, “tipo deletério, que adorava fazer intrigas, dizer que éramos todos comunistas, drogados, os piores elementos”. No relato aparece um Roberto Marinho bem mais coerente na conspícua (e promíscua) aliança com o regime do que o autor chega a reconhecer explicitamente – tanto que o episódio no qual Clark é afinal defenestrado mistura, de forma reveladora, a disputa pelo poder no regime militar com aquela que se processava na Globo, escancarando as relações perigosas entre o governo e a rede de tevê consolidada à sombra do autoritarismo.

O autor nega que o motivo de sua saída tenha sido, como se propalou na época, seu comportamento pessoal pouco ortodoxo (em razão de excessos alcoólicos) numa festinha com poderosos de Brasília. O livro atribuiu a demissão à queda de braço com o regime, que exigia o expurgo na Rede Globo da afiliada paranaense de Paulo Pimentel, político que rompera com o antigo protetor, ministro Ney Braga, e ainda era desafeto do chefe do SNI, general João Baptista Figueiredo, então a caminho da Presidência. Se assim foi, faltou a Clark reconhecer ter sido demitido na primeira vez em que de fato ousava contrariar os donos do poder. “Eu argumentava”, escreveu ele “que o governo tinha o poder concedente dos canais de rádio e tevê e, se quisesse atingir o Paulo [Pimentel], que cassasse a sua concessão e enfrentasse o desgaste político”. Mas Marinho, pragmático, pensava diferente, talvez sintonizado, naquele sombrio ano de 1977, com o clima incerto gerado por mais uma demonstração de força do regime, o Pacote de Abril.

Amigos, amigos, negócios à parte: James Baldwin, Wallach, Clark e Boni (em pé); Arce e Armando Nogueira (sentados).

Até veto de música no festival da canção
Clark nem sequer notou a semelhança desse episódio com tantos outros que marcaram a aliança promíscua da Globo com o poder – e nos quais ela se limitara a acatar a vontade do regime. Alguns de tais episódios, envolvendo a tevê e autoridades militares, desfilaram ao longo do livro O campeão de audiência: o ataque do general Muricy a um documentário da CBS (para ele, “subversivo”) sobre o Vietnã, comprado ironicamente pelo norte-americano Wallach, do Time Life; o Jornal Nacional, no terceiro dia de sua existência, proibido por um coronel (Manoel Tavares) do gabinete do general Lira Tavares (membro da Junta que tomara o poder) de noticiar o sequestro do embaixador dos EUA e a doença de Costa e Silva, os dois principais assuntos; o aviso do general Sizeno Sarmento de que as músicas “Caminhando” e “América, América” estavam proibidas de ganhar o Festival Internacional da Canção; a ordem do general Orlando Geisel para as patriotadas de Amaral Neto serem incluídas no horário nobre; a prisão do próprio Clark pelo Dops no dia do Ato 5, por ordem do coronel Luís França (em represália por ter ele discutido com o motorista do militar num incidente de trânsito).


Marinho andava de braço dado com o ditador Figueiredo.


Enfim, a especialidade da Globo era acomodar-se a cada situação. A acomodação prevaleceu ainda no dia da queda de Clark. Ele aceitou sem discutir o prêmio de consolação (US$2 milhões) oferecido por Marinho. E limitou-se a encomendar o texto da carta de demissão (“em alto estilo… literário”) ao amigo Otto Lara Resende, suficientemente versátil para também escrever em seguida a resposta na qual o dono da Globo agradeceu os serviços prestados pelo demissionário (quatro anos depois Otto aceitaria também a missão de fazer o prefácio do livro O campeão de audiência).

A demissão é uma espécie de anticlímax da autobiografia, na qual o autor assumiu compulsivamente a responsabilidade pelas iniciativas bem-sucedidas da Globo, declarou-se adepto de programas de qualidade (mas o salto de audiência veio com os popularescos de baixo nível, de Raul Longras, Chacrinha, Dercy Gonçalves etc., bem na linha da atual pornografia BBB) e atribuiu o mal feito a outros – como os que mantiveram elevado o faturamento e a liderança absoluta de audiência nos anos seguintes, enquanto o próprio Clark, que na Globo tinha o maior salário do mundo (clique aqui para ler a notícia no New York Times sobre a demissão do brasileiro com o maior salário do mundo) e frequentava presidentes e ministros, descia ao fundo do poço, de fracasso em fracasso (como diretor de duas tevês, logo demitido, e produtor de dois filmes nos quais sequer se reconheceu sua contribuição, mais um espetáculo teatral altamente deficitário).

“Em 14 anos, depois de minha saída, o que houve de realmente novo?”, perguntou o autor naquele ano de 1991, referindo-se à Globo. Pouca coisa, talvez. Hoje, com a perda crescente de audiência para os concorrentes e sem os privilégios garantidos nos 20 anos de ditadura militar, ela está condenada a conformar-se com as regras da democracia e da competição. E passa a valer para a Globo a amarga reflexão pessoal de Clark no livro: “Não se deve cultivar excessivamente o poder, pendurar-se emocionalmente nele, porque um belo dia o poder acaba e o dia seguinte é terrível.”
 

A estranha morte de Jango

Jango06
limpinho e cheiroso 

Mauro Santayana em seu blog
A família de João Goulart autorizou a exumação de seus ossos, a fim de que se averigue a causa de sua morte – atribuída a um ataque cardíaco. O presidente deposto era, desde jovem, cardiopata, e isso facilitou a versão oficial para o óbito prematuro. Jango morreu aos 57 anos. Sobre o assunto tenho depoimentos a dar. O primeiro deles é sobre a personalidade serena de Jango. Conheci-o em seus primeiros meses como ministro do Trabalho, em visita a Belo Horizonte.

Como repórter, acompanhei-o em seus encontros com os líderes sindicais de Minas. Eu o veria várias vezes nos anos seguintes, antes de com ele conviver no exílio em Montevidéu. Jango foi fiel à memória de Vargas, a quem dedicava afeto de filho. Suas ideias eram as de Getulio. A ele devo manifestações fortes de solidariedade naqueles anos sombrios.

Quando Lacerda morreu, Tancredo Neves comentou comigo suas suspeitas. Era curioso que as três personalidades mais fortes da oposição ao regime militar, e que haviam estabelecido uma aliança para a recuperação republicana do Brasil, morressem uma depois da outra: Juscelino em agosto e Jango em dezembro de 1976, e Lacerda em maio do ano seguinte. “Se todos morreram por acaso, isso só pode ser proteção de Deus ou do Diabo aos militares.” Como já estivéssemos no processo conspiratório para a redemocratização do País, Tancredo abriu a camisa, mostrou a medalha que trazia no peito e disse contar com seus santos protetores, entre eles São Francisco de Assis.

Os inúmeros depoimentos conhecidos mostram que os Estados Unidos não hesitam em livrar-se de seus inimigos, reais ou imaginários, por todos os meios. Quando lhes convêm, contratam sicários para a tarefa sórdida, como fizeram, ainda no festejado governo Roosevelt, ao recrutar o sargento Somoza para matar Sandino e, em seguida, entregar-lhe o governo da Nicarágua. Da mesma forma atuaram, ao apoiar, ostensivamente, o general Pinochet a fim de dar o golpe, bombardear o Palácio de La Moneda e dar fim a Salvador Allende, presidente do Chile. Quando isso não é recomendável, ou não dispõem de assassinos confiáveis, usam seus próprios agentes. Eles o fazem no “interesse da pátria”.

Conhecer a verdade sobre a morte de Jango, se ainda é possível descobrir as provas de possível assassinato, 36 anos depois, é um direito de seus familiares, e, mais do que seu direito, direito da nação. Se isso ocorreu, provavelmente os responsáveis pelo assassinato ainda poderão ser localizados – e pagar pelo seu crime. Se forem agentes estrangeiros, só um vazamento nos revelará a agressão.

Mas o conhecimento do crime será advertência severa contra aqueles que, em nome da “ordem”, ou de qualquer outra ideia, pregam a supressão da liberdade e submissão dos povos ao terror do Estado ditatorial.

quarta-feira, 20 de março de 2013

À procura dos desaparecidos

revistadehistoria

Parentes de militantes do PC do B enfrentaram a ditadura civil-militar para encampar a primeira expedição em busca da verdade sobre o Araguaia

Aline Salgado
12/3/2013

"Fomos perseguidos o tempo todo. A tal ponto do bispo de Belém, Dom Alano Pena, intervir, dizendo que, se um fio de cabelo nosso caísse, eles, os militares, seriam responsabilizados". Aos 68 anos, Diva Santana, irmã de Dinaelza Coqueiro Santana e cunhada de Vandick Reidner Coqueiro, ambos mortos na guerrilha, relembra como começou a luta por respostas ao desaparecimento dos militantes do Araguaia.
Com panfletos em mãos, os integrantes da caravana dos familiares de desaparecidos do Araguaia percorreram os municípios de Xambioá (TO) e Marabá (PA) atrás de seus filhos. (Fotos: Arquivo Pessoal) 

Mesmo perseguidos, pais, irmãos e esposas se uniram e juntos formaram uma caravana que, nos anos 80, foi até o então acampamento dos militantes do PC do B, às margens do rio Araguaia, tentar encontrar pistas que pudessem levar ao paradeiro de seus familiares.

"Depois da Anistia de 79, que não contemplou os mortos e desaparecidos políticos, os que voltavam do exílio não davam conta de informar onde estavam e se estavam vivos os militantes do Araguaia. Só se sabia pelo partido, por meio do relatório de Arroyo, quem havia morrido em emboscada nos anos de 74 e 75. Mas, depois disso, não tínhamos informações. Até que, no Segundo Congresso de Anistia, em Salvador, decidimos organizar uma caravana até a região. Fizemos um trabalho de mobilização nacional e internacional, em que, até o papa, soube que iríamos para lá", conta Diva Santana, que é conselheira da Comissão sobre e Mortos de Desaparecidos Políticos.

Com panfletos em mãos esclarecendo que eram apenas pais e mães em buscas de seus filhos, o grupo, de pouco mais de 20 pessoas, percorreu os municípios de  Xambioá (Tocantins) e Marabá (Pará). Lá, encontraram uma população atormentada, vivendo sob a sombra do medo e do silêncio, mas que, ainda assim, deu algumas informações aos parentes das vítimas.

"Chorando a morte do irmão, uma mulher indicou uma sepultura. Lá foram encontradas as ossadas de um homem jovem e outro velho. Logo depois, um outro morador indicou o local onde havia uma ossada enrolada num paraquedas. Depois, foram encontradas botas femininas e um corpo com um tiro na testa", relata Victória Grabois, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Ela conta que, até hoje, tenta enterrar o pai,  Maurício Grabois (dirigente do PC do B à época), o irmão, André, e o marido, Gilberto Olímpio Maria.

 
Denuncia à nação
Já Diva Santana lembra dos  riscos que o grupo de familiares dos desaparecidos sofreu na região. "O bispo de Marabá à época, Dom Alano Pena, chegou a receber uma carta de Curió (coronel Sebastião Curió Rodrigues de Moura, acusado por vários guerrilheiros como torturador durante a ditadura civil-militar) dizendo que quem se aproximasse de nós ia ser castigado. Depois da expedição, fizemos um documento chamado de 'Denúncia à Nação' e entregamos ao então deputado federal, Ulisses Guimarães", conta.

Durante as buscas pela região do Araguaia, familiares receberam ameaças do Major Curió


Mais de 15 anos depois da primeira expedição do Araguaia é que foi iniciada a exumação das ossadas encontradas na região. Foi assim que em 1996 o corpo de Maria Lúcia Petit foi identificado. O reconhecimento, através da análise da arcada dentária, foi feito pela equipe do legista Badan Palhares, na Unicamp. Maria Lúcia Petit foi a primeira vítima da guerrilha do Araguaia a ser enterrada pela família.

Só em 2009, depois da sentença da 1º Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal, acatando a ação dos familiares das vítimas do Araguaia, é que o Estado tomou à frente nos trabalhos para encontrar a verdade sobre o Araguaia. Na época, o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, criou o Grupo de Trabalho Tocantins e, por meio do GTT, começaram as expedições oficiais na região à procura das ossadas dos mortos e desaparecidos do Araguaia. Em 2011, o grupo mudou de nome e formato: passou a se chamar GTA (Grupo de Trabalho do Araguaia) e recebeu representantes do Ministério da Justiça, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, além das polícias Federal e Civil e universidades.
 

Os ditadores sabiam, sim

diz Paulo Sérgio Pinheiro:

publicado em 4 de fevereiro de 2013 às 14:01

“Na ditadura, o Presidente, os generais e os executores dos crimes estavam inteirados dos excessos”

Em entrevista, o acadêmico e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro fala sobre os trabalhos da Comissão da Verdade
29/01/2012
por Bia Barbosa

Desafios do Desenvolvimento (revista do Ipea), via Brasil de Fato

Desde maio de 2012, o Brasil tem uma Comissão da Verdade em funcionamento. Seus objetivos são analisar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. No entanto, o foco principal está no exame dos crimes de Estado cometidos no período da ditadura militar (1964-1985). Paulo Sérgio Pinheiro, intelectual com larga trajetória na academia e na diplomacia, é um dos integrantes do novo órgão. Nesta entrevista ele fala de seu funcionamento, do exame dos crimes e da necessidade da sociedade conhecer os excessos para que eles não se repitam.

Depois de muita polêmica, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou, em novembro de 2011, a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade. Formada para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado entre 1946 e 1988, a Comissão foi instalada oficialmente em maio de 2012.

O acadêmico e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecido por sua idoneidade e identificação com a defesa da democracia e dos direitos humanos, é um dos sete integrantes da Comissão. Até maio de 2014, ele e seus colegas têm a missão de identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias em que foi praticada a repressão de Estado durante a ditadura militar.

Para isso, poderão requisitar informações e documentos de órgãos do Poder Público, independentemente de seu grau de sigilo, convocar para testemunho pessoas que possam guardar qualquer relação com os eventos examinados e até determinar a realização de perícias e diligências para coleta de informações. Ao final do trabalho, devem apresentar um relatório com conclusões e recomendações de medidas e políticas públicas para assegurar a não repetição de tais violações.

Nesta entrevista, Paulo Sérgio Pinheiro detalha como anda o trabalho e os principais desafios que a Comissão Nacional da Verdade tem pela frente.


Desafios do Desenvolvimento - Como está sendo realizado o trabalho da Comissão? 
Paulo Sérgio Pinheiro - Das quarenta Comissões da Verdade que conheço, a maioria levou seis meses para decolar. Talvez aqui no Brasil devêssemos ter estipulado um prazo para organizá-la. Mas já há muita coisa acumulada, não partimos do zero. Somos sete membros e 15 assessores, mais consultores e secretária. Há várias equipes trabalhando, fundamentalmente com arquivos. Os do Itamaraty, por exemplo, têm quatro toneladas de documentos. Nada foi queimado. Também há a tentativa de se ter acesso a documentos das Forças Armadas. O ministro Celso Amorim [da Defesa] tem dialogado e dado apoio, da mesma maneira que o ministro [Antonio] Patriota [Relações Exteriores].

Teremos ainda acesso aos documentos da Funai [Fundação Nacional do Índio], pois muitas violações foram cometidas em ações contra indígenas, ou que tiveram relação com conflitos agrários. Uma subcomissão importante, é a que analisará o papel do Judiciário na ditadura. Aquele poder sofreu e também colaborou intensamente com a aplicação da legislação autoritária. Além disso, estamos preocupados com os milhares de membros das Forças Armadas reprimidos e punidos internamente durante o período, algo que pouco se tem falado. Por fim, uma das preocupações fundamentais é completar as informações sobre os desaparecidos – 475 foram analisados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos – e os exterminados, como os 42 sobreviventes da guerrilha do Araguaia que foram assassinados na última “Operação Limpeza”, em 1974.


O senhor está trabalhando em qual das subcomissões? 
Eu trabalho com a questão dos sistemas de informações externas, numa rede que existiu dentro do Ministério das Relações Exteriores e que teve colaboração bastante estreita com os órgãos de repressão. Também tenho um interesse especial pela reconstituição dos vários crimes que estão na lei, como os assassinatos, desaparecimentos forçados e prisões arbitrárias, como configurando uma política de Estado dos governos da ditadura. Quer dizer, é preciso superar aquela noção de que tivemos práticas e excessos cometidos por alguns poucos. Na verdade, desde o Presidente da República, os generais e até os que executaram cometeram esses crimes, todos estavam absolutamente inteirados. Mas isso resta ser documentado.


No caso dos desaparecimentos forçados e assassinatos já comprovados, há uma perspectiva de a Comissão fazer um estudo caso a caso? 
Refazer os 400 casos e mais as centenas de outras ocorrências individuais é uma tarefa impossível. Mas estamos começando a reexaminar laudos de necropsia utilizados nas informações sobre esses desaparecimentos.


Uma das polêmicas sobre o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade tem sido o sigilo de seu trabalho. Qual a sua opinião sobre isso? A ideia é que, ao final, tudo se torne público?
Por trás dessa polêmica há uma enorme desinformação. Recentemente tivemos um seminário sobre comissões da verdade na América Latina e todas, também a da África do Sul, trabalharam com confidencialidade. Trata-se de uma investigação sobre crimes cometidos. Então não dá para fazer audiências com torturadores ou suspeitos envolvidos nos desaparecimentos na frente da televisão! Se considerarmos que há possibilidade de obter informações que não teríamos, podemos conceder o anonimato. Do mesmo modo que a imprensa trabalha com sigilo de fontes, nós também trabalhamos com sigilo dos depoimentos. Isso é assim, foi assim e vai continuar sendo assim. Mas também há uma dimensão pública do trabalho, que são as audiências coletivas, em que se ouvem depoimentos específicos. É evidente que a informação sobre o que se faz tem que ser pública. O nosso site ainda é muito insatisfatório, vai ser aperfeiçoado, mas vamos informar minuciosamente tudo o que se faz: as correspondências trocadas com as autoridades, que tipo de arquivo consultamos etc. Agora, depoimentos no curso de uma investigação, não vamos publicar. Se vamos publicar depois, é outro problema.


Há também um objetivo de estabelecer um diálogo com a sociedade através dessas audiências?
Para mim, a audiência pública ideal é a que trata de um caso concreto: o depoente, acompanhado de um advogado, com o relato sendo televisionado de modo que os que sofreram os crimes possam testemunhar. Isso nos dá informações, mas também tem um papel em relação às vítimas, que podem participar publicamente do processo. Vamos visitar todos os Estados. No Pará, o governador Simão Jatene disse que vai propor a todas as correntes políticas a criação de uma Comissão estadual. Em Alagoas, ela já foi formada. Na OAB de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul também.


Estão surgindo também comissões nas Assembleias Legislativas e em universidades. Qual o papel desses espaços?
A Comissão Nacional da Verdade não é coordenadora desses movimentos. Ela tem um estatuto especial, é uma comissão do Estado, produto de uma lei, nomeada pela Presidenta da República para apresentar um relatório final do seu trabalho. Mas é evidente que vamos colaborar com essas comissões. Acho da maior validade, por exemplo, o movimento do Levante Popular, feito pelos estudantes. Isso politiza o tema. O escracho e os comitês de memória dentro das universidades estão dando uma contribuição extraordinária.


Essas ações dialogam com um dos objetivos da Comissão, que é sensibilizar a sociedade para o que aconteceu neste período?
Não precisamos ter grandes ilusões de que uma sociedade profundamente autoritária e fundada no racismo estrutural vá se mobilizar de um dia pra outro e sustentar a Comissão da Verdade. Mas é evidente que a diferença entre silêncio e mobilização pode melhorar, inclusive com a ajuda da mídia. Nossa comissão é a única da América Latina que está acontecendo no século XXI. No funcionamento das Comissões da Verdade na Guatemala e de El Salvador não havia internet, twitter, facebook, nem toda a digitalização de arquivos. O atraso da criação da Comissão assim é altamente compensado pelo que foi realizado e pelos novos meios de comunicação.


O senhor falou da colaboração entre Comissão e Ministério da Defesa. Mas o ministro anterior, Nelson Jobim, chegou a afirmar que todos os documentos haviam sido destruídos. Como está esse processo agora?
O ministro Jobim é meu amigo, fez o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, mas a posição oficial da Comissão, que já foi publicada, é que julgamos ilegais esses atos de destruição de documentos. Minha opinião é que só quem acredita em fadas acha que não existe nenhum arquivo. A própria Aeronáutica cedeu vários deles para o Arquivo Nacional.


Pessoalmente, como o senhor se vê neste processo?
Somos um grupo muito integrado, de grande coesão. Todos já trabalhamos, em algum momento, um com o outro. E temos uma equipe extraordinária de assessores e consultores, além do apoio da Presidenta Dilma, sem interferência de nenhum ministro. O apoio material do governo também é muito maior do que eu podia supor.


Como o senhor analisa as críticas feitas às funções e formato da Comissão antes da aprovação da lei?
Essas críticas vieram de setores que desejavam uma Comissão da Verdade com funcionamento de tribunal. Ora, nenhuma das quarenta Comissões da Verdade, inclusive a da África do Sul, teve poder judicial. O importante é que nossa comissão tem mais poderes do que qualquer outra da América do Sul e Central no século XXI, porque temos o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã.
Funcionários civis e militares então, nem se fala! E os que não vierem, denunciaremos ao Ministério Público Federal. Em segundo lugar, temos acesso a qualquer arquivo, não importa seu grau de sigilo. Nos ministérios, já temos acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Em terceiro, ao contrário do Poder Judicial, por causa da Lei da Anistia e do acórdão do Supremo Tribunal Federal, temos o mandato de indicar a autoria e as circunstâncias em que foram cometidos os assassinatos, as torturas, os desaparecimentos forçados e a detenção arbitrária.


Houve afirmações também de que a Comissão não conseguiria trabalhar por conta da decisão do STF sobre a Lei de Anistia.
Foi outra choradeira. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. A Lei da Anistia não nos atrapalha nem ajuda, é algo que não nos impede de fazer o que a Comissão nasceu para fazer. O relatório final vai indicar a autoria e as circunstâncias em que esses crimes foram cometidos pela ditadura.


Considerando sua experiência em direito internacional e o conflito entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da Corte Interamericana no caso Araguaia, existe a possibilidade de, no relatório final da Comissão, haver uma recomendação para que a Justiça de responsabilize os responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a ditadura?
Não sei. Felizmente ainda temos vinte meses para resolver essa questão das recomendações. A posição de todos os membros da Comissão da Verdade, inclusive a minha, que fui membro por oito anos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apoiei a decisão do presidente Fernando Henrique, em 1998, de reconhecer a competência da Corte Interamericana, é que uma decisão da Corte deve ser cumprida pelo Estado brasileiro. A doutrina do direito internacional interamericano diz que as autoanistias não são válidas, e a anistia no Brasil, como já falei muitas vezes, foi uma autoanistia. O Supremo não entendeu assim, mas não cabe a mim nem à Comissão da Verdade ficar contestando essa decisão. É algo que cabe ao Estado brasileiro, e isso não nos atrapalha.


O senhor concorda com a estratégia do Ministério Público de abordar judicialmente crimes como o desaparecimento e a ocultação de cadáveres como crimes não prescritos, para poder responsabilizar os perpetradores?
Não tenho competência para avaliar se é uma boa ou uma má estratégia. Só posso dizer da minha satisfação em ver o Ministério Público Federal e o Sistema Judiciário brasileiro assumindo seu papel dentro dos ditames da lei, que dão a eles alguma possibilidade de ação. Digo a mesma coisa sobre outras condenações que estão surgindo. Tenho a maior alegria em ver o resultado de casos como o [do coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra [declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em agosto último], especialmente pelo que isso significa para as famílias dos que foram torturados e assassinados. Essa manifestação dos tribunais brasileiros é algo que dá grande conforto e esperança às famílias.


Por outro lado, há setores que ainda reagem aos avanços. O Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, teve sua sede invadida. É de se esperar que, com o funcionamento da Comissão da Verdade, conflitos sociais venham à tona para disputar diferentes visões sobre este período na sociedade?
Nós estamos numa democracia. No Brasil vigora a liberdade de opinião, as pessoas e a imprensa são livres para se expressar. Mas evidentemente não se pode cometer crimes, como essa invasão da sede do Tortura Nunca Mais, que deve ser investigada. Desde que a expressão dessas opiniões não seja traduzida em crimes, as pessoas são livres para pensar o que quiserem sobre a Comissão da Verdade. Não espero unanimidade.


Um dos objetivos da Comissão da Verdade é a promoção da reconciliação nacional. Qual a sua leitura sobre esse conceito?
Este termo está presente na lei que criou a Comissão e na denominação de várias outras comissões da verdade pelo mundo. Mas enquanto não tivermos bem encaminhados na reconstrução da verdade, é muito cedo para se discutir reconciliação. Também depende do que vamos encontrar; a reconciliação pode ocorrer na dinâmica do processo. As vítimas querem antes saber sobre a autoria, as circunstâncias e a responsabilidade do Estado, para então fazer esse trajeto da reconciliação. Mas não somos nós que vamos guiá-las. Este é um tema para o Estado brasileiro.


Quando a lei que cria a Comissão aponta no sentido da reconciliação, ela sinaliza uma preocupação com o legado da ditadura nos dias de hoje. Na sua avaliação, esse legado persiste? 
O entulho autoritário continua, por exemplo, na parte da tortura. Não tem jornalista ou preso político torturado, mas é um vexame que isso ainda continue. Execuções sumárias pelas polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo também são intoleráveis. A democracia não pode continuar a conviver com isso. Também não pode conviver com o ensino nas Forças Armadas ainda passar uma visão da ditadura militar totalmente positiva, como se não existissem os crimes que estamos discutindo. O processo, dinâmica e as recomendações da Comissão podem contribuir para superar esse legado autoritário. Por outro lado, uma das minhas tarefas na Comissão é reconhecer onde que progredimos. Senão, nos daríamos um atestado de incompetência total.


Quais os grandes gargalos que o país ainda enfrenta na garantia dos direitos humanos?
Ainda que tenhamos caminhado na luta contra a pobreza extrema, além dos direitos econômicos e sociais, o gargalo são os direitos civis e a defesa dos direitos das minorias. A situação subalterna ainda prevalece nos direitos econômicos e sociais, por exemplo, para a maioria afrodescendente. É importante reconhecer que o Brasil teve uma continuidade na política de direitos humanos. As violações continuam, mas não são mais uma política de Estado.


Apesar de a violação de direitos humanos não ser mais política de Estado, ainda há políticas de Estado que possibilitam a violação?
Mas não é o Estado que organiza os crimes cometidos por seus agentes. As violações hoje cometidas por agentes do Estado nos estados da Federação não são coordenadas como foram durante o regime militar, o que já é uma diferença extraordinária. Continuará a haver problemas, porque a caminhada dos direitos humanos nunca termina. Temos uma porção de problemas, mas é preciso olhar para o que avançou para reexaminar em que falhamos e o que deu certo.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...