domingo, 17 de março de 2013

Susana Lisboa: “Este é o único país do mundo em que as vítimas não podem conhecer seus algozes”




 Por Katarina Peixoto (*)
“Eu não posso me conformar que o projeto tenha tido andamento sem que os familiares dos mortos e desaparecidos, que levantaram essa bandeira durante todos esses anos tenham sido sequer convidados a participar. Então, este é o único país do planeta em que as vítimas não podem conhecer nem ir atrás dos seus algozes. Uma coisa que é…é horrível”. 

Susana Lisboa dispensaria apresentações, fosse este um país mais decente com a sua história. É uma gaúcha, militante pelo direito à memória e ao resgate da história dos desaparecidos, torturados e mortos pelos agentes do Estado na mais recente ditadura cívico-militar brasileira. Susana casou aos 17 anos e ficou viúva aos 21; hoje, com mais de 60 anos, acumula 40 anos de buscas pelas informações sobre as circunstâncias do desaparecimento e morte de seu companheiro, Luis Eurico Tejera Lisboa, militante da Ação Libertadora Nacional, exterminado pelos órgãos de tortura e extermínio da Ditadura Militar.

Susana Lisboa, dirigente da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos pela Ditadura Militar Brasileira, é servidora pública. Ela conversou com Carta Maior numa de suas últimas tardes de expediente, antes de se aposentar.

Despojada e cheia de vida, tem um mundo de histórias para contar e ainda se arrepia quando fala dos casos novos que não param de aparecer, de pessoas que foram torturadas, de famílias que renegaram seus mortos pela ditadura e daqueles que fizeram das indenizações verdadeiros “shows do milhão”.

Esta mulher dedicou à vida a uma busca que, numa democracia consolidada e cultivada, seria desnecessária. Ela, Susana, não teria sido lembrada, nem posteriormente esquecida, por aqueles que respondem pelos arquivos históricos dos aparelhos do Estado brasileiro e seus ex ou atuais porta vozes e patrocinadores dominantes. Ela seria uma viúva, de um dos militantes que tiveram a vida barbaramente ceifada pelos delinquentes que assaltaram o poder e dele abusaram por mais de vinte anos, neste país. E então saberia dizer, com certeza, quais as circunstâncias dessa morte e, como manda a doutrina penal, a do processo penal e a lógica da pena, saberia quem matou o seu marido, qual o motivo alegado e, portanto, qual a pena correspondente. Em qualquer curso de direito decente se sabe que esses requisitos básicos da responsabilização penal precedem e deveriam preceder qualquer debate eventual sobre anistia, lei de anistia e hermenêutica da lei de anistia. Mas o Brasil não tem sido decente com a sua história.

Perguntei a Susana se, caso algum dos familiares dos mortos e desaparecidos fosse chamado para participar da Comissão da Verdade, seria o caso de aceitarem. Ela respondeu que não vão chamá-los, uma vez que sequer da discussão do projeto da Comissão foram convidados a tomarem parte. Em tom de desabafo, embora cheia de ânimo, afirmou “eu disse que tinha para mim que eu não faria nenhuma cobrança pública sobre esse assunto da presidenta Dilma Rousseff, porque eu conheço ela, eu sei o que ela pensa sobre esse assunto, e eu sempre disse que eu não sabia o que ela poderia fazer sobre esse assunto.

Mas eu sei o que ela pensa, eu sei qual é a opinião dela. É diferente do presidente que a antecedeu, que do meu ponto de vista me enganou sobre o que ele pensava sobre esse assunto. Eu acho que ele pensava outras coisas”.

Sobre a criação da Comissão e as suas atividades, Susana disse que, no que estiver ao alcance dos familiares de mortos e desaparecidos, é óbvio que eles irão apoiar, “porque não foi à toa que lutamos por essa Comissão durante toda a vida”. No entanto, em seguida deixa claro seu motivo de desconfiança em relação a esta Comissão em vias de criação. “Tenho uma expectativa muito pequena em relação a isso”. Além de não terem sido convocados os familiares, e de eles não terem sido sequer consultados ou escutados, a Comissão da Verdade investigará, em 2 anos, arquivos e dados de um intervalo histórico cujo marco de origem é o ano de 1946.

Para ela, a vastidão do período histórico e o curto intervalo de tempo para investigação de dados são uma manobra para descaracterizar o período pós-64, quando os militares, apoiados por setores da elite econômica, assaltaram o poder e deram início à longa ditadura militar brasileira. “Então significa que você não quer mexer a fundo no que aconteceu naquele período; esse é o espírito do legislador. Para bom entendedor, basta. O espírito do legislador é este: não mexer com a questão da ditadura, porque se não, não teria posto esse período na lei. Isso é uma forma de se manter o sigilo, existem informações que vão se manter sigilosas”.

Outro aspecto problemático que ela aponta é o dos nomes indicados para a Comissão, pois para Susana, as atividades e o trabalho que estão em jogo não devem ser usados “para formar currículo”. Se só os membros da comissão terão pleno acesso a informações, de um período histórico tão vasto para um curto intervalo de tempo de investigação, a interpretação de que muito permanecerá em sigilo faz sentido. Bem como a de que este é um objetivo a ser assegurado.

Lembro, durante a conversa com Susana, que muitos torturadores são conhecidos pelas vítimas e também por seus familiares. Ela retruca, lembrando que mesmo que isso seja verdade, há ainda muitos torturadores e assassinos cujos nomes permanecem em sigilo, que seguem anônimos, corroborando a denegação dos crimes. Então ela lembra do que se estabeleceu no caso dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia. É uma das pessoas que vai, juntamente a familiares de desaparecidos e militantes dos direitos humanos e membros do governo, a Xambioá, como parte das atividades do Grupo de Trabalho do Araguaia, na busca por identificação dos restos mortais dos desaparecidos da Guerrilha. Susana relata que em Xambioá, no acampamento e nas instalações militares estabelecidas para fins da busca desses restos mortais, os soldados que escavam e buscam não fazem ideia do que estão buscando, além de ossos, ossadas. E que os militares de patentes superiores, na hierarquia do exército, tratam os familiares com muita civilidade e presteza.

Um dia, um cabo ou sargento perguntou a Susana se elas (a irmã de um dos desaparecidos do Araguaia, que tinha passado mal com o calor e foi prontamente atendida pelos militares, com gelo, inclusive) precisavam de mais alguma coisa, ao que Susana respondeu, sugerindo ao militar que ele dissesse ao seu superior, ao superior do seu superior, que os familiares não precisavam apenas de ossos e de ossadas, mas de informação, que de nada adianta concederem-lhes as ossadas, se permaneciam sem saber como os seus foram mortos, em que circunstâncias e quem os matou.

“Eu sou mulher do primeiro desaparecido que nós localizamos, enterrado com nome falso, em Perus, e a denúncia foi feita no dia da votação da anistia; quantos anos faz isso? E eu até hoje não sei como ele morreu. Eu vou continuar sem saber depois da comissão da verdade? Vou continuar com essa dúvida?”, questiona Susana Lisboa.

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