quinta-feira, 4 de abril de 2013

O estopim do golpe?

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‘Festa’ de marujos com direito a apoio às Reformas de Base, em 25 de março de 1964, teria contribuído para a deposição do presidente João Goulart, dias depois

Anderson da Silva Almeida

Correio da Manhã de 27 de Março de 1964


Era dia 25 de março de 1964. Reunidos no Sindicato dos Metalúrgicos da Guanabara, mais de 1,5 mil marinheiros e fuzileiros navais pretendiam comemorar os dois anos da fundação de sua Associação. Mas o clima não era agradável. Um dia antes, os jornais já noticiavam que parte da diretoria seria presa em virtude de terem se manifestado contra o ministro da Marinha, almirante Sylvio Motta, na semana anterior. Entre os dirigentes procurados, estavam o marinheiro José Anselmo dos Santos – presidente da Associação; o cabo Marcos Antônio da Silva Lima – vice-presidente; e o também marinheiro Antônio Duarte dos Santos – presidente do Conselho Deliberativo. Entre os que já estavam presos, o segundo vice-presidente Avelino Capitani e José Duarte dos Santos, que no período após o golpe de 1º de abril de 1964, iriam se tornar importantes quadros da esquerda armada no Brasil.

Naquele dia de março, já havia se passado 54 anos da Revolta da Chibata; e os marinheiros brasileiros não sofriam mais castigos corporais de seus superiores.

O nível de escolaridade havia melhorado, as formas de admissão já não eram tão desastrosas e a Marinha de Guerra continuava o processo de profissionalização de seu pessoal. Em 1960, cinco Escolas de Aprendizes-Marinheiros, situadas nos estados de Pernambuco, Ceará, Bahia, Santa Catarina e Espírito Santo funcionavam como núcleos de formação dos marinheiros brasileiros. Outros, não oriundos destas escolas, ingressavam através do recrutamento ou como soldados Fuzileiros Navais, recebendo formação em diferentes centros espalhados pelo país, sendo o Rio de Janeiro o principal deles. No entanto, novos problemas que envolviam a questão da cidadania dos marujos surgiram e, mais uma vez, como na canção de João Bosco e Aldir Blanc, “o Dragão do Mar reapareceu”! [Sobre a Revolta de 1910, ver RHBN, edições 9, 44 e 53].


Cabo Anselmo
O “cabo” Anselmo – que na realidade tinha a graduação de marinheiro -, por exemplo, foi preso após o golpe de 1964, depois de ter deixado o asilo na embaixada mexicana. Em 1966, conseguiu fugir da prisão com a ajuda de militantes da esquerda armada e foi enviado a Cuba para treinamento guerrilheiro. Ao regressar ao Brasil no ano de 1970, passou a agir como agente duplo e levou dezenas de militantes para a morte, inclusive sua companheira, a paraguaia Soledad Barret Viedma, que estava grávida.

As questões disciplinares foram alguns dos aspectos que contribuíram para exaltar os ânimos e consolidou a posição do alto escalão da Marinha de não reconhecer a entidade que representava a base da pirâmide hierárquica da instituição. Desde a fundação a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), em 25 de março de 1962, seus dirigentes tentavam o reconhecimento oficial da Marinha, o que possibilitaria, entre outras coisas, que as mensalidades dos sócios fossem descontadas diretamente no contracheque dos associados. Em virtude da conjuntura política brasileira, cujos ânimos acirraram-se pelo menos desde a renúncia do presidente Jânio Quadros em 25 de agosto de 1961, o ambiente nos quartéis também foi contaminado. A aparição dos marujos na cena política - em eventos de sindicatos, em apoio a sargentos eleitos para cargos políticos e em manifestações em prol de João Goulart - não era aceita pela Marinha, pois só os almirantes tinham o monopólio da palavra e podiam expressar suas opiniões de caráter político.

No espaço interno, a AMFNB cresceu assustadoramente e em pouco menos de dois anos já contava com cerca de 15 mil sócios. Seus dirigentes organizaram serviços de atendimentos médicos para as companheiras - visto que não podiam casar oficialmente e suas esposas não eram reconhecidas pela Marinha como tais; criaram o jornal A Tribuna do Mar; conseguiram um programa na importante Rádio Mayrink Veiga; obtiveram o reconhecimento de utilidade pública estadual; firmaram convênios com o ministério da Educação para aquisição de material didático; articularam apoio e passaram a utilizar espaços cedidos pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Na mesma proporção do prestígio, as reivindicações frente à Marinha também foram ampliadas. Passaram a requerer melhorias nas condições de vida a bordo dos navios e quartéis, incluindo alimentação e alojamentos; direito de andar à paisana em suas folgas; autorização para estudar e casar; reformas no plano de carreira e conquista da estabilidade aos dez anos de profissão. Em relação aos aspectos políticos reivindicavam o direito de votar para cargos políticos. Queriam, sem dúvida, ser considerados cidadãos.


No dia da assembleia comemorativa, ou dia da festa, uma presença chamou a atenção da imprensa: João Cândido Felisberto. Importante liderança dos marujos revoltosos de 1910, João Cândido foi descoberto pelos marujos de 1964 morando em condições precárias na região de São João de Meriti, no Rio de Janeiro, e passou a ser tratado como herói pelos membros da AMFNB, inclusive recebendo uma ajuda mensal da instituição. Em 25 de março de 1964, João Cândido foi o convidado de honra. Também estiveram presentes no encontro o deputado Max da Costa Santos – representando o presidente da República; os membros do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) Hércules Corrêa e Dante Pelacani; o deputado sargento Garcia Filho e representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE).


Apoio às reformas de base
O fato de parte da diretoria estar presa ajudou a acirrar ainda mais os ânimos dos presentes. O presidente da Associação, José Anselmo, destacou em seu longo discurso o apoio às Reformas de Base do governo Jango. O cabo Cláudio Ribeiro propôs que os marinheiros se apresentassem presos e ficassem nessa condição até que seus companheiros fossem soltos e a AMFNB reconhecida pela Marinha. A proposta foi aceita e a festa ganhou ares de rebelião. Após intervenção do marinheiro Otacílio, decidiram permanecer no sindicato, pois a maioria morava nos navios e não teria onde ficar com segurança.

Ao tomar conhecimento da decisão dos marinheiros, o ministro da Marinha decretou Regime de Prontidão Rigorosa, situação na qual todos os militares deveriam se apresentar em suas Organizações Militares. Como não foi atendido, determinou ao almirante Cândido da Costa Aragão, Comandante-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, que enviasse uma tropa para prender os rebelados. Aragão não conseguiu cumprir a ordem, pediu exoneração e foi seguido pelo também almirante fuzileiro Washington Frazão Braga. Assumiu a missão Luís Phelippe Sinay que se dirigiu com cerca de 90 fuzileiros navais para a sede do sindicato na manhã do dia 26. Para a surpresa de todos, ao ouvir apelos dos colegas “entrincheirados” que emocionados cantaram o Hino Nacional Brasileiro, parte da tropa arriou suas metralhadoras na calçada e aderiu ao movimento rebelde.

Lá dentro, explosão de euforia, lágrimas e abraços. A essa altura, populares e familiares ofereciam apoio moral e material aos rebeldes, cedendo comida, cigarros e jornais, que naquele dia já noticiavam: “Marinheiros realizam sua reunião e quarenta vão ser presos” (Jornal do Brasil, 26/03/1964, capa e p. 05); “Marinheiros e Fuzileiros realizam reunião agitada” (Correio da Manhã, 26/03/1964, p.02); “Marinheiros e fuzileiros vão se apresentar presos se não forem libertados seus colegas” (O Globo, 26/03/1964, p.11).

Após a adesão dos fuzileiros, o ministro Motta pediu ajuda do Exército, recebendo apoio de nove caminhões e 12 tanques de guerra para cercar todo o quarteirão da Rua Ana Nery. Com o risco da invasão e a possibilidade de mortes iminente, Jango resolveu voltar de sua folga no Rio Grande do Sul e assumir as negociações. Na manhã do dia 27, mais um episódio causaria comoção geral na marujada. O marinheiro Alcides chegou todo molhado e informou que colegas tinham sido atingidos por tiros no Arsenal de Marinha da Praça Mauá, quando tentavam se dirigir ao sindicato. À tarde Jango tomou a decisão de substituir o ministro Sylvio Motta pelo almirante da reserva Paulo Mário da Cunha Rodrigues. Os marujos comemoraram em liberdade, chegando a erguer nos ombros o almirante Aragão em agradecimento por sua recusa em reprimir violentamente o movimento. Tentando apaziguar os ânimos, o novo ministro, com o aval de Jango, optou por não punir os rebeldes, alegando que “teria que começar pelos almirantes”.

A “anistia” dada aos marujos levou militares indecisos, a grande imprensa e setores da sociedade a pregar abertamente o golpe contra João Goulart. Os marinheiros e fuzileiros que criaram, organizaram e consolidaram a Associação teriam que conviver durante muitos anos com o estigma de provocadores do Golpe ludibriados por um suposto agente infiltrado na AMFNB, que seria ninguém menos que o presidente José Anselmo, vulgo “cabo” Anselmo. Vários marinheiros que se destacaram como lideranças no período, foram expulsos e condenados a vários anos de prisão. Outros, que tiveram atuações destacadas nas organizações das esquerdas armada, a exemplo de Avelino Capitani, Marcos Antônio da Silva Lima, Cláudio de Souza Ribeiro e José Raimundo da Costa, tiveram suas trajetórias silenciadas e apagadas da história recente do Brasil.




Anderson da Silva Almeida é autor de Todo o leme a bombordo – marinheiros e ditadura civil-militar no Brasil: da Rebelião de 1964 à Anistia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012. prêmio Memórias Reveladas, 2010.


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