Por Tatiana Merlino, no sítio da Comissão da Verdade de São Paulo:
Quando os homens já estavam dentro de sua casa, Ieda pensou em resistir e
pegar a metralhadora que estava em cima da mesa. Não houve tempo. Ela,
sua irmã Iara e a mãe delas, Fanny, foram arrancadas de casa e levadas
para a Oban (Operação Bandeirantes), em São Paulo.
Passava das 21 horas de 16 de abril de 1971 quando elas chegaram ao
centro de tortura da Rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Lá estavam presos
e sendo torturados desde a manhã daquele dia, seu irmão, Ivan Akselrud
Seixas, e seu pai Joaquim Alencar de Seixas, ambos militantes do
Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT).
Mãe e filhas foram separadas. Ieda foi levada para um
banheiro, no segundo andar do prédio. Lá, havia uma cama e no lugar do
colchão, uma tela e um cobertor.
O entra e sai de homens no cômodo era grande. As luzes apagaram-se, e
Iara ouviu a ordem: “tragam o Ivan”. Na sequência, um som de rajada de
metralhadora e um grito de Fanny. Era a primeira de várias simulações do
fuzilamento de Ivan que a família viveria.
Ieda estava sentada na cama quando o movimento de homens no banheiro
continuou. Um entrava depois do outro, uns dez no total. Um deles
sentou-se ao seu lado, pressionando-lhe o corpo. Do outro lado, sentou
outro, que usava um chapéu. “Era um homem asqueroso”, recorda-se Ieda.
Ele tirou os sapatos e enfiou a mão por entre as pernas de Ieda,
alcançando sua vagina. “Me dê choque, me bata, mas não façam isso
comigo”, suplicou a moça, desesperada, em vão. O homem era o delegado da
polícia civil Davi dos Santos Araújo, conhecido no DOI-Codi como
Capitão Lisboa.
Simulação
De madrugada, Ieda foi colocada numa viatura veraneio C-14, cheia de
homens, e levada ao Parque do Estado. Ivan foi levado ao mesmo destino,
porém em outro carro. Lá, houve novamente a simulação de fuzilamento do
então adolescente de 16 anos. E, no carro, Capitão Lisboa, sentado ao
lado de Ieda, novamente a violentou.
No caminho de volta ao DOI-Codi, os agentes desceram numa padaria para
tomar café e de dentro do carro, Ivan e Ieda conseguiram ver a manchete
do jornal Folha da Tarde numa banca de revista, que dizia que o pai
deles, Joaquim Alencar de Seixas morrera. Porém, quando os irmãos
chegaram ao DOI,Joaquim ainda estava vivo.
Mais tarde, Ieda foi obrigada a tomar um copo de leite, muito doce. “Só
acordei no dia seguinte. Creio que fui dopada enquanto tiravam de lá o
corpo do meu pai, que havia sido morto”.
Seixas fora assassinado por volta das 19 horas do dia 17. Sua esposa,
Fanny, viu uma C14 ser estacionada no pátio e dentro colocarem o corpo
do marido. Ouviu, também, um policial perguntar a outro: “De quem é esse
presunto?”. Como resposta, ouviu: “Esse era o Roque” [codinome de
Seixas].
O depoimento emocionado de Ieda Seixas foi dado na última quinta-feira,
14/03, em audiência pública da Comissão da Verdade do Estado de São
Paulo “Rubens Paiva”, que também contou com o relato da ex-presa
política Elza Lobo.
Desaparecimento
Além do assassinato de seu pai, das torturas que ela e sua família foram
submetidas, Ieda ainda denunciou o caso de um jovem que viu desaparecer
no DOI-Codi. “Eu vi esse menino sentado no pátio. Era magro, loiro,
aparentava ser muito novo. Ele foi levado para o andar de cima, onde foi
torturado. Ouvimos seus gritos, e depois, ele silenciou, foi morto.
Não sei quem é esse garoto. Certamente ele ainda está sendo procurado
por alguma família”, relatou.
Ieda ficou um ano e meia presa: “Mas é como se tivesse ficado quase
seis, porque foi o tempo que o Ivan ficou preso”. Passados 41 anos de
sua prisão, a mulher de hoje 65 anos afirma que os gritos dos torturados
da Oban nunca saíram da sua cabeça.
Durante a audiência, o presidente da Comissão da Verdade de SP, o
deputado Adriano Diogo, comemorou a transformação do prédio onde
funcionou, por 72 anos, o Tribunal da Justiça Militar, em Memorial dos
Advogados de Presos Políticos. No imóvel também funcionará a sede de
comissões da verdade.
Cadeira do dragão e choques
No dia 10 de novembro de 1969, voltando do trabalho, Elza Lobo chegou em
casa e encontrou a porta de entrada encostada. Sentado na escada,
estava o capitão Maurício [Lopes Lima]. Levada à Oban, a então militante
da Ação Popular Marxista Leninista foi submetida a inúmeras torturas.
Puseram-lhe um capuz, e depois de atravessar uma área externa, foi
levada para um corredor, com paredes molhadas, de onde escorria água.
Depois, foi transferida para uma sala de tortura, onde foi colocada na
cadeira do dragão, [cadeira revestida de zinco ligada a terminais
elétricos, onde presos sentavam nus]e submetida a choques elétricos nas
mãos, orelhas, seios, vagina.“As torturas foram intermináveis”,
recorda-se Elza, que à época era funcionária da Secretaria da Fazenda de
São Paulo.
“A gente ficava jogado no chão, com a porta trancada. Se queria ir ao
banheiro, tinha que pedir. E eles decidiam se abriam ou não”, explicou,
durante a audiência da Comissão da Verdade. Elza lembrou de outra
situação “muito violenta”, quando entre os interrogadores havia “pseudo
religiosos, fingindo-se de bonzinhos para nos tentar convencer a falar.
Até livros religiosos eles traziam para completar a farsa”, explicou.
Depois de 15 dias na Oban, Elza foi levada para o Dops, e no total,
ficou 2 anos presa. A audiência de sobreviventes foi a primeira de uma
série, que irá ouvir ex-presos vítimas de tortura.
* Tatiana Merlino é jornalista da assessoria da Comissão da Verdade
do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”- presidente Adriano Diogo.