1964: O golpe contra as reformas e a democracia



Caio Navarro de Toledo
Professor da Unicamp
 


RESUMO
Busca-se argumentar neste artigo que o movimento político-militar de abril de 1964 representou, de um lado, um golpe contra as reformas sociais que eram defendidas por setores progressistas da sociedade brasileira e, de outro, um golpe contra a incipiente democracia política nascida em 1945.
Palavras-chave: Golpe de Estado; Democracia política; Reformas sociais e econômicas.

ABSTRACT
It is our intention in this article to demonstrate that the beginning of the military dictatorship in 1964 represented on one hand a blow against social reforms defended by brazilian progressist groups and on the other hand a blow against the inchoate political democracy established in 1945.
Keywords: Coup d' État; Political democracy; Social and economical reforms.



INTRODUÇÃO
Durante a curta existência do governo João Goulart (setembro de 1961 a março de 1964), um novo contexto político-social emergiu no país. Suas características básicas foram: uma intensa crise econômico-financeira; constantes crises político-institucionais; crise do sistema partidário; ampla mobilização política das classes populares paralelamente a uma organização e ofensiva política dos setores militares e empresariais (a partir de meados de 1963, as classes médias também entram em cena); ampliação do movimento sindical operário e dos trabalhadores do campo e um inédito acirramento da luta ideológica de classes.

Passados quarenta anos, o governo e os tempos de Goulart são ainda objeto de interpretações controversas e antagônicas. Liberais e conservadores atribuem ao período e ao governo apenas aspectos negativos e perversos: "baderna política", "crise de autoridade" e "caos administrativo"; inflação descontrolada e recessão econômica; quebra da hierarquia e indisciplina nas forças armadas; "subversão" da lei da ordem e avanço das forças de esquerda e comunizantes etc.1


Enquanto existe um forte consenso entre liberais e conservadores, divergentes são as visões entre os setores de esquerda acerca da natureza e do significado do governo Goulart. Para estes, vários foram os juízos aplicados: governo de "traição nacional", de orientação social-democrata ou democrático popular; governo populista de esquerda ou nacional-reformista – e até mesmo de "orientação revolucionária".2 Haveria, no entanto, praticamente um consenso entre os setores da esquerda ao interpretarem o período de 1961-1964 como um momento em que a luta de classes no Brasil alcançou um de seus momentos mais intensos, dinâmicos e significativos.3


Neste breve texto, procuramos argumentar que o movimento político-militar de abril de 1964 representou, de um lado, um golpe contra as reformas sociais que eram defendidas por amplos setores da sociedade brasileira e, de outro, representou um golpe contra a incipiente democracia política burguesa nascida em 1945, com a derrubada da ditadura do Estado Novo.

Neste sentido, a seguinte formulação de Florestan Fernandes é aqui plenamente endossada:

O que se procurava impedir era a transição de uma democracia restrita para uma democracia de participação ampliada ... que ameaçava o início da consolidação de um regime democrático-burguês, no qual vários setores das classes trabalhadoras (mesmo de massas populares mais ou menos marginalizadas, no campo e na cidade) contavam com crescente espaço político.4

Assim, de imediato, rejeita-se a versão dos vitoriosos de 1964 que, na busca de legitimação e justificação do movimento, denominaram-no de Revolução.5 Por sua rara lucidez, as palavras do general-presidente Ernesto Geisel deveriam ser levadas mais a sério, até mesmo por historiadores e cientistas políticos não-conservadores. Num depoimento em 1981, afirmou Geisel que "o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma idéia, em favor de uma doutrina".6


Para o vitorioso de 1964, o movimento se fez contra Goulart, contra a corrupção, contra a subversão. Estritamente falando, afirmou o general, o movimento liderado pelas Forças Armadas não era a favor da construção de algo novo no país.

Embora lúcidas – na medida em que rejeitavam a noção de Revolução –, as formulações do ex-ditador podem ser objeto de uma releitura. Assim, com legitimidade teórica, podemos ressignificar todos os contras presentes no depoimento do militar. Mais apropriado seria então afirmar que 1964 significou um golpe contra a incipiente democracia política brasileira; um movimento contra as reformas sociais e políticas; uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um estancamento do amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso no país.


Em síntese, as classes dominantes e suas elites ideológicas e repressivas, no pré-64, apenas enxergavam baderna, anarquia, subversão e comunização do país diante de legítimas iniciativas dos operários, camponeses, estudantes, soldados e praças etc. Por vezes, expressas de forma altissonante e retórica, tais demandas, em sua substância, reivindicavam o alargamento da democracia política e a realização de reformas do capitalismo brasileiro.


UM GOVERNO NO TRAPÉZIO7
A rigor, o governo de Goulart se inicia em janeiro de 1963, após a contundente derrota do regime parlamentarista. Com o apoio de amplos setores empresariais, e dos setores políticos nacionalistas e conservadores, a campanha para o retorno ao presidencialismo foi vitoriosa. A partir desse momento, Goulart deixava de desempenhar o papel que foi a ele atribuído com a implantação do parlamentarismo; deixava, pois, de ser uma autêntica "rainha da Inglaterra" que, embora reinasse, não governava...

Assumindo o governo no regime presidencialista, a grande indagação que se fazia era: conseguiria Goulart superar a crise econômico-financeira, atenuar as graves tensões sociais e afastar as crises políticas que havia dois anos desgastavam o Executivo federal? As propostas que as diversas classes sociais e setores políticos ofereciam para resolver os problemas da inflação, do endividamento externo, do déficit no balanço de pagamentos e da recessão econômica não deixavam de ter orientações conflitantes e antagônicas.


Nesse sentido, é importante assinalar – como adiante se mostrará de forma mais elaborada – que o período de Goulart foi ideologicamente muito significativo, pois nele se processaram intensos debates – com as orientações teóricas mais diversas (monetaristas, estruturalistas, nacional-desenvolvimentistas) – sobre os rumos e as direções que deveriam orientar a economia e o Estado brasileiros.

Como era previsível, o Executivo anunciou que seu plano de governo tinha condições de resolver em profundidade os impasses e as dificuldades enfrentados pelo conjunto da sociedade brasileira. Essa ambiciosa proposta, denominada de Plano Trienal de desenvolvimento econômico-social: 1963-1965, foi elaborada pelo renomado e respeitado economista Celso Furtado (Ministro do Planejamento), com a colaboração do jurista e professor San Thiago Dantas (Ministro da Fazenda).


De início, assinale-se que a composição do primeiro ministério presidencialista de Goulart revelaria de forma muito expressiva as ambigüidades, as limitações e o estilo conciliador que predominariam durante todo o governo. No ministério encontravam-se políticos conservadores do PSD, petebistas "fisiológicos" e "nacionalistas" e militares dos setores "duros". O Ministério era, assim, a expressão dos difíceis compromissos assumidos por Goulart para tomar posse: conciliar nacionalistas radicais e setores conservadores além de reformistas, anti-reformistas e simpatizantes socialistas.

O Plano Trienal procurava compatibilizar o combate ao surto inflacionário com uma política de desenvolvimento que permitisse ao país retomar as taxas de crescimento semelhantes às do final dos anos 50. Como reconheciam alguns setores de esquerda, o Plano constituía-se num avanço em relação às teses ortodoxas dominantes, pois afirmava ser possível combater o processo inflacionário sem sacrificar o desenvolvimento. Apesar de não atribuir aos salários efeitos inflacionários, na prática, o Plano pedia – como todos os planos de "salvação nacional" – que os trabalhadores (novamente) "apertassem os cintos", em nome de benefícios que viriam obter a médio e a longo prazo. Os tradicionais apelos à "colaboração" e ao "patriotismo" da classe trabalhadora eram reiterados pelos formuladores do Plano.

Inicialmente, os empresários industriais saudaram a proposta governamental; mas esta sofreria os seus primeiros (e fortes) abalos com os protestos vindos dos setores sindicais e das organizações nacionalistas e de esquerda. Logo nos primeiros dias de fevereiro, o CGT difundia um manifesto em que se denunciava o "caráter reacionário" do plano do governo Goulart. As críticas se aprofundaram a partir do momento em que as conseqüências da política de eliminação de subsídios ao trigo e ao petróleo começaram a ter efeitos sobre os salários das classes populares. CGT, PUA, FPN, UNE e o "grupo nacionalista" do PTB se unem na condenação do Plano Trienal de Furtado e Dantas.

O caso da tentativa de compra da American Foreign Power – Amforp veio comprometer ainda mais a imagem do chamado governo nacionalista. Ao mesmo tempo em que retirava os subsídios para o trigo e o petróleo e cortava investimentos públicos, o governo anunciou que estava prestes a adquirir, por 188 milhões de dólares, doze usinas do setor de energia elétrica norte-americanas. 

Visivelmente Jango cedia às pressões do governo dos Estados Unidos ao adquirir um autêntico "ferro-velho", como alguns técnicos e burocratas da própria administração federal viriam esclarecer. Tratava-se, assim, de uma "verdadeira negociata" em curso. Diante da grave acusação de "crime de lesa-pátria", por parte da esquerda nacionalista, o governo recuou. (Meses mais tarde, a Amforp seria adquirida por iniciativa do governo de Castelo Branco.)

Ao findar o ano de 1963, o malogro do Plano Trienal era reconhecido por todos: não ocorreu nem desaceleração da inflação nem aceleração do crescimento. Houve, sim, inflação sem crescimento.


Tão logo se esboçou o fracasso do plano – antes mesmo da conclusão do primeiro semestre de 1963 –, o governo Goulart passou a empunhar de forma mais enérgica a bandeira das reformas de base (agrária, bancária, fiscal, eleitoral etc.). Como reconhecia o Plano, as reformas eram indispensáveis a fim de que o capitalismo industrial brasileiro pudesse alcançar um novo patamar de desenvolvimento. Concomitantemente, os setores da esquerda nacionalista erigiam as reformas como condições indispensáveis à ampliação e fortalecimento da democracia política no país. Sem as reformas sociais e econômicas que poderiam promover uma melhor distribuição da renda e menor desigualdade regional, a democracia capitalista continuaria sendo – afirmavam os documentos das esquerdas – um mero formalismo, pois distante das necessidades e demandas das classes populares e trabalhadoras.



O GOLPE CONTRA AS REFORMAS E A DEMOCRACIA
a) Em toda nossa história republicana, o golpe contra as frágeis instituições políticas do país se constituiu em ameaça permanente. Seu fantasma rondou, em especial, os governos democráticos no pós-46; com maior intensidade, a partir dos anos 60.

Assim, pode-se dizer que o governo Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de Estado. Goulart foi empossado em setembro de 1961, após a fracassada tentativa golpista de Jânio Quadros. Com sua inesperada renúncia, JQ visava, contudo, o fechamento do Congresso que lhe fazia oposição. Não tendo o povo saído às ruas para exigir dos militares a volta do renunciante, o golpe se frustrou. A emenda parlamentarista, imposta ao Congresso nacional pela junta militar, pode ser interpretada como um "golpe branco". O Congresso, acuado e ameaçado pela espada, reformou a Constituição sob um clima pré-insurreicional, contrariando, assim, dispositivos constitucionais da Carta de 46.

Em outubro de 1963, alegando a necessidade de impedir "grave comoção interna com caráter de guerra civil",8 Goulart – por imposição de seu dispositivo militar – tentou impor ao Congresso o estado de sítio. Se o estado de exceção visava silenciar Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, quem poderia negar que líderes de esquerda como Miguel Arrais e Leonel Brizola não estariam também incluídos na "lista saneadora" elaborada pelos militares, com a inteira anuência do próprio Goulart?

Em abril de 1964, o golpe de Estado – permanentemente reivindicado por setores da sociedade civil – foi, então, plenamente vitorioso.

b) O golpe estancou um rico e amplo debate político, ideológico e cultural que se processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou não), jornais etc. Assim, nos anos 60, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam politicamente em defesa de seus projetos sociais e econômicos.

De forma sumária e esquemática, mencionemos apenas algumas das propostas ideológicas formuladas no período pós-guerra e no pré-64:9
1) Liberalismo não-desenvolvimentista, de orientação não-industrialista. "Neoliberais" reunidos em torno da UDN, da FGV, do Conselho Nacional de Economia, da Associação Comercial do Estado de São Paulo e outras entidades. Entre os mais conhecidos defensores destas posições estavam Eugênio Gudin e Octávio Bulhões;

2) Liberalismo desenvolvimentista, de orientação não-nacionalista. Perspectiva ideológica que se vincula à burocracia pública. Entidades representativas: BNDE, Comissão Mista Brasil–EUA. Entre seus economistas, destacam-se Roberto Campos, Lucas Lopes, Glycon de Paiva etc.;

3) Desenvolvimentismo privatista: CNI, FIESP. "Herdeiros" de Roberto Simonsen: João Paulo de A. Magalhães, Hélio Jaguaribe e outros;

4) Desenvolvimentistas nacionalistas. Entidades como ISEB,10 CEPAL, setores do BNDE, PTB. Figuras representativas: Celso Furtado, Ignácio Rangel, Rômulo de Almeida, Evaldo C. Lima, Guerreiro Ramos e Vieira Pinto;

5) Socialistas/Comunistas. PCB e PSB. Intelectuais representativos: Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Jr., Alberto Passos Guimarães e outros.

Inúmeras revistas especializadas e não-acadêmicas, semanários e jornais traduziam e difundiam essas correntes teóricas e ideológicas. A esse respeito, vejamos a questão do ângulo dos setores progressistas. Não tendo acesso aos meios de comunicação de massa, a esquerda nacionalista e socialista, além de seus órgãos de imprensa (jornais, revistas etc.), buscava difundir as propostas reformistas do nacional-desenvolvimentismo – ou mesmo da revolução socialista – por meio de experiências como o teatro, o cinema, a música e as artes plásticas.


O cinema novo – com limitação de recursos, mas com o generoso lema de "uma idéia na cabeça e uma câmera na mão" – colocou as camadas populares (no campo e na cidade) como protagonistas centrais de suas narrativas. Assim, os primeiros e excelentes filmes de Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra e outros se tornaram possíveis a partir desse novo contexto político e ideológico que se constituía no país.

O movimento estudantil – através de sua representação maior, a UNE e as UEEs – teve atuação destacada nessa nova modalidade de agitação política e debate cultural. Além de defender a reforma universitária, o ME buscava associar-se aos demais movimentos de orientação nacionalista e reformista; através de caravanas que percorriam o país, eram exibidas peças teatrais e divulgadas músicas que debatiam o subdesenvolvimento, as reformas de base, a revolução, o imperialismo etc.

Esse variado e promissor contexto cultural e ideológico levou um arguto crítico a afirmar que, no pré-64, o Brasil começava a ficar "irreconhecivelmente inteligente".11


c) Mas, o golpe também visou estancar a democracia que se expressava pela demanda da ampliação da cidadania dos trabalhadores urbanos e rurais. 

No triênio 1961-1963, o sindicalismo brasileiro alcançou um de seus momentos de mais intensa atividade. Enquanto de 1958 a 1960, sob o governo JK, haviam ocorrido cerca de 180 greves, nos três primeiros anos de Goulart foram deflagradas mais de 430 paralisações. Nesse mesmo período, diferentes organizações de coordenação dos sindicatos, no plano regional e nacional, foram criadas. Embora proibida pela rígida legislação sindical então vigente, o Comando Geral dos Trabalhadores – CGT teve uma destacada atuação na cena política brasileira. Juntamente com outras centrais sindicais de menor vulto, o CGT foi responsável pelas primeiras greves de caráter explicitamente político na história brasileira.

Para afronta dos setores de direita, as lideranças do CGT eram recebidas em Palácio pelo presidente da República e reconhecidas como interlocutores de importantes dirigentes partidários. 

A imprensa conservadora designava o CGT como o "quarto poder", reforçando o fantasma, forjado na época de Vargas, de que Goulart visava instituir no país uma "República sindicalista".


Durante todo o período, foi muito estreita a vinculação do CGT com o governo Goulart. Embora não se possa afirmar que tenha sido apenas "massa de manobra" do governo – pois reivindicava sua autonomia política –, o CGT colaborou estreitamente com Goulart, apoiando-o abertamente na maioria de suas iniciativas políticas. Tal compromisso era justificado pelo fato de a ideologia nacional-desenvolvimentista, elaborada pelo PCB e hegemônica dentro do CGT, ser convergente com as propostas reformistas de Goulart.

O caráter populista do governo aqui se manifestava de forma nítida e exemplar. As ações do sindicalismo – seja através de suas greves na defesa de reivindicações estritamente econômicas ou de caráter político – eram toleradas e até mesmo incentivadas por Goulart, pois serviam ao projeto nacional-reformista. No entanto, o controle político da CGT por lideranças sindicais independentes – por exemplo, por parte do PCB e do "grupo compacto" do PTB – sempre foi combatido por Goulart e por sua assessoria sindical. Em todo o período, Goulart revelou clara preferência por lideranças e organizações sindicais que, em troca de sua independência política e ideológica, recebiam facilidades e favores governamentais.

Como se sabe, o mito do "quarto poder", representado pelo CGT, veio abaixo inteiramente com o fracasso da organização em oferecer qualquer resistência à ação dos golpistas de abril.

d) A luta pela cidadania política dos trabalhadores do campo também constituiu uma realidade nova na história social do país. As Ligas Camponesas, que notabilizaram o advogado e deputado federal Francisco Julião, nasceram das lutas de resistência de pequenos agricultores e não-proprietários contra a tentativa de expulsão das terras onde trabalhavam; de 1959 a 1962, as Ligas tiveram uma acelerada expansão em todo o Nordeste. Contestavam elas a dominação política e econômica a que as populações rurais estavam secularmente submetidas. Em algumas localidades, ocorreram conflitos armados entre camponeses e proprietários de terras; lideranças camponesas eram perseguidas e assassinadas a mando dos latifundiários, alarmados com a politização das massas rurais.12

Na luta pela Reforma Agrária, as Ligas se associaram às demais organizações políticas progressistas do país, participando – tal como ocorre hoje com o MST – de comícios, passeatas e manifestações no Congresso em defesa das reformas de base, em particular da Reforma Agrária.
Extensas reportagens, em revistas e jornais do Brasil e do exterior, informavam seus leitores acerca da ação e dos objetivos, "subversivos" e "revolucionários", das Ligas Camponesas. O Nordeste, faminto e sedento, estava a um passo de uma radical e violenta "guerra camponesa", era a conclusão a que se chegava com a leitura dessas alarmistas reportagens da grande imprensa.

e) No pré-64, outras reivindicações políticas visavam o alargamento da democracia liberal vigente no país: entre elas, o direito de voto aos analfabetos, o direito dos setores subalternos das forças armadas de postularem cargos eletivos (a carta de 46 lhes vedava esse direito) e a legalidade do Partido Comunista Brasileiro, posto fora da lei desde 1947. Embora alguns de seus membros conseguissem ser eleitos por outros partidos, embora tivesse lideranças em sindicatos, editasse revistas e semanários,13 o PCB não podia realizar seus encontros e reuniões senão de forma clandestina e sob permanente repressão policial. A inexistência do pluralismo ideológico-partidário no pré-64 se constituía, assim, numa séria deformação da democracia política no país.

f) O golpe de 64 visou também estancar o debate político que, no Congresso e na sociedade, estava centralizado em torno das reformas sociais e políticas. De forma sintética, situemos o caso da reforma agrária – o carro-chefe das reformas sociais e econômicas.


Desde o parlamentarismo, Goulart levantou a bandeira da reforma agrária; em discurso no dia 1º de maio de 1962, o presidente propunha a revisão do Artigo 141 da Carta de 1946 que condicionava as desapropriações de terra à "prévia indenização em dinheiro". Para o conjunto dos partidos e movimentos sociais que defendiam as reformas,14 a manutenção desse artigo da Constituição, na prática, inviabilizava a reforma agrária.

Desde essa época, entidades ruralistas, setores da Igreja católica, partidos liberais conservadores (UDN e setores majoritários do PSD) e a grande imprensa, por exemplo – radicalmente contrários à revisão constitucional – fizeram campanha nacional contra a chamada reforma agrária "radical" do governo.

Na perspectiva nacional-desenvolvimentista, a reforma agrária era essencial para que o capitalismo industrial no Brasil pudesse alcançar um nível superior de desenvolvimento. De um lado, era preciso aumentar a produção agrícola (alimentos, matérias-primas para a indústria etc.) ao mesmo tempo em que se buscava ampliar o mercado interno para os bens manufaturados. De outro lado, prevendo situações crescentes de tensões e conflitos sociais, propunha-se uma melhor distribuição de terras improdutivas. 

Num depoimento, Darci Ribeiro, um dos mais íntimos assessores de Goulart, sintetizou a visão do governo sobre o assunto: "Jango, latifundiário, queria fazer a reforma agrária para defender a propriedade e assegurar a fartura, evitando o desespero popular e a convulsão social".15


Ao contrário do que avaliavam os setores reacionários dos proprietários rurais, da alta hierarquia da Igreja católica, da UDN e do PSD, muito longe das intenções de Goulart estava a abolição da propriedade privada que daria início à "comunização" do país... Como sinceramente declarou em várias oportunidades, Goulart entendia ser possível – com as reformas sociais – consolidar o capitalismo industrial brasileiro e torná-lo mais humano e patriótico. Ou seja, nos anos 60, o mito de um capitalismo nacional e civilizado – tal como ainda hoje aparece no debate ideológico – era alimentado por Goulart e por alguns setores progressistas e nacionalistas.

A manutenção do latifúndio e as profundas desigualdades sociais no campo eram, assim, fatores decisivos para a manutenção de uma democracia política muito distante das aspirações e necessidades das classes populares. Democracia profundamente limitada, pois incapaz de superar o clientelismo, o mandonismo, os currais eleitorais e o poder incontestável do latifúndio e dos coronéis.



CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao afirmarmos que o golpe de 1964 teve como protagonistas principais as facções duras das forças armadas e o empresariado nacional (através de seus partidos, entidades de classe e aparelhos ideológicos)16 – com o decidido apoio e o incentivo da embaixada e de agências norte-americanas (Departamento de Estado, Pentágono e outras)17 –, não significa que devemos isentar os setores nacionalistas e de esquerda pelo dramático desfecho do processo político.


Comportamentos, gestos e declarações – altissonantes e, a rigor, autênticas bravatas – de lideranças progressistas contribuíram para o agravamento do processo político. Neste sentido, será a partir do comício pelas reformas no dia 13 de março, sexta-feira, que a crise política se agudizará. Assim, paralelamente às versões alarmistas, forjadas pelos setores conservadores, alguns gestos e declarações de lideranças importantes do movimento nacionalista – pelo radicalismo verbal de que se revestiram – tiveram o efeito inesperado de unificar a direita civil e militar.

Depois desse comício, a batalha ideológica se ampliou; no noticiário dos jornais, se intensificaram os boatos de que Goulart – com o apoio do PCB, do CGT e das forças políticas nacionalistas – preparava um golpe de Estado.18

No entanto, em termos de palavras e gestos, Goulart foi o protagonista mais eloqüente do drama que se encenaria nas duas últimas semanas de março. Dois gestos de Goulart podem ser interpretados como os de um ator que, de forma desesperada e agônica, se lança de peito aberto diante de seus adversários ou algozes.

Primeiro ato: sua complacência em relação à insubordinação de cabos e marinheiros no Rio de Janeiro. Ao anistiar os revoltosos, o presidente afrontou o ministro da Marinha que, dias antes, tinha punido os "rebeldes"; provocou, assim, a indignação de toda a corporação militar. Na passeata dos marinheiros que comemorava o indulto presidencial, Candido Aragão, conhecido como o "almirante vermelho" ou "almirante do povo", foi carregado em triunfo.


Segundo ato: o panfletário discurso do Presidente numa assembléia de marinheiros, no Automóvel Clube do Brasil, na noite de 30 de março.
Transmitido pela televisão, diante de um auditório repleto de soldados, sindicalistas e políticos nacionalistas, Goulart denunciou as forças reacionárias e golpistas. Com veemência defendeu – para a redenção do país – a necessidade de um "golpe das reformas". As palavras eloqüentes e os gestos dramáticos do presidente da República muito se assemelhavam à carta-testamento de Vargas. Sem atirar contra o próprio peito, Goulart parecia decidir pelo suicídio político.

Depois desses dois episódios, a sorte do governo Goulart estava definitivamente selada. Poucas horas após a transmissão de seu discurso, tropas comandadas por oficiais golpistas de Minas puseram o pé na estrada. Trocas de telefonemas entre oficiais foram suficientes para neutralizar o chamado "dispositivo militar" de Goulart.

Mas, diante de insinuações de que os setores progressistas e de esquerda – pela intransigência de 
suas demandas e ações – também devem ser responsabilizados pelo desfecho dos acontecimentos de abril de 1964, é preciso sempre lembrar e ressaltar que quem planejou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes dominantes através de suas forças políticas e entidades de classe.19 

Como ressaltamos, os setores conservadores e liberais da sociedade civil – as chamadas "vivandeiras de quartel" –, durante todo o período republicano se manifestaram resolutamente contrários à ampliação das liberdades políticas e dos direitos sociais das classes populares e dos trabalhadores. Desde 1950, manobras golpistas foram tentadas, intensificando-se a partir da renúncia de Jânio Quadros.

O golpe de 1964 veio, pois, coroar as tentativas anteriormente fracassadas. Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o golpe foi saudado pelas classes dominantes e seus ideólogos, civis e militares, como uma autêntica Revolução. Aliviadas por não terem de se envolver militarmente no país, as autoridades norte-americanas congratularam-se com os militares e políticos brasileiros pela "solução" encontrada para superar a "crise política" no país.


O governo Goulart que, nos últimos dias de março de 1964, contava com elevada simpatia junto à opinião pública,20 ruiu como um castelo de areia. As classes populares e trabalhadoras estiveram ausentes das manifestações e passeatas que, em algumas capitais do país, pediam a destituição de Goulart. Embora não se opusessem ao governo, os setores populares e os trabalhadores nada fizeram para evitar a derrubada do governo. As forças políticas que afirmavam representar esses setores nenhuma ação significativa desenvolveram para impedir o golpe que há muito tempo se anunciava no horizonte político. O golpe de 64, bem sabemos, não foi um raio em céu azul...

Desarmadas, desorganizadas e fragmentadas, as forças progressistas e de esquerda nenhuma resistência ofereceram aos golpistas. Alegando que não queria assistir a uma "guerra civil" no país, Goulart negou-se a atender alguns apelos de oficiais legalistas no sentido de ordenar uma ação repressiva – de caráter intimidatório – contra os sediciosos que vinham de Minas.21 Preferiu o exílio político.

No discurso de lideranças de esquerda, a expressão "cabeças cortadas", dirigida contra os eventuais golpistas, tinha um sentido metafórico; com a ação dos "vencedores de abril", ela se tornará uma cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os vinte anos da ditadura militar.


NOTAS
1 Eugênio Gudin, num de seus artigos – amplamente difundidos pela grande imprensa brasileira no pré-64 –, talvez sintetize a visão dos setores liberais-conservadores: "Temos tido governos inertes e governos incapazes, que pecaram largamente por omissão, deixando belas oportunidades para agir em benefício do país. Mas nunca tivemos ... um governo tão encarniçadamente decidido a destruir, desmoralizar e até a prostituir tudo quanto neste país existe de organizado". Por um Brasil melhor, Rio de Janeiro, APEC, s.d. Ressalvadas algumas expressões ultramontanas do (reconhecido) patrono dos economistas (neo)liberais brasileiros, não seria outro o juízo de alguns notáveis discípulos seus. Roberto Campos, Delfim Netto, Octavio Bulhões, Mário Henrique Simonsen, João Paulo Veloso – que desempenharam funções relevantes na formulação das políticas econômicas dos governos militares – partilhavam, juntamente com os demais liberais brasileiros (udenistas ou não), dessa sectária visão. Deve ser dito, no entanto, que essa percepção – de um governo que atentava contra a ordem legal e que conduzia o país à anarquia política – teve ampla difusão, particularmente nos últimos meses de Goulart. O Correio da Manhã – que, em 1961, desafiando o veto militar, apoiou a posse de Goulart – publicou no dia 31 de março de 1964 um editorial com o título "Basta!". Nele, deplorava-se a conduta do presidente da República e, explicitamente, defendia-se a destituição de Goulart. Sabe-se que, entre os que redigiam o editorial político do Correio da Manhã estavam respeitados jornalistas de convicções democráticas e progressistas, tais como Otto Maria Carpeaux, Edmundo Moniz, Newton Rodrigues e Osvaldo Peralva. Cf. GASPARI, E. A ditadura envergonhada, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.65.        [ Links ]


2 Para Paulo Schilling, o governo Goulart "foi o mais eficiente agente das classes dominantes e do imperialismo na contenção do avanço popular. De traição em traição chegou ... à entrega do poder à direita". Como a direita se coloca no poder, São Paulo: Global, 1979. Na avaliação de Darci Ribeiro, o governo de Goulart foi derrubado "porque ele era uma ameaça inadmissível para a direita e inaceitável para os norte-americanos. Daí a contra-revolução preventiva..." In: DANTAS MOTA, L. (Coord.) A história vivida II. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1981.        [ Links ]


3 Para o historiador Jacob Gorender, o período "marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros" no século XX. Para ele, "nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo". Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada, 2.ed. São Paulo: Ática, 1987, p.66-7.        [ Links ]

4 FERNANDES, F. Brasil, em compasso de espera, São Paulo: Hucitec, 1980, p.113.        [ Links ]

5 Para a extensa maioria dos críticos do movimento de março e abril de 1964, tratou-se de um golpe de Estado que derrubou um governo burguês democrático com orientação reformista e progressista. Autores como F. Fernandes, J. Gorender e D. Ribeiro buscam qualificar a natureza do golpe: tratou-se de uma contra-revolução. A frase de F. Fernandes, antes citada, expressa bem esse ponto de vista. Gorender acredita que a intensidade da luta de classes no período – com a possibilidade de eclodir uma revolução anticapitalista – qualifica o golpe como tendo um caráter "contra-revolucionário preventivo". Nas suas palavras, "a classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo entornasse". Gorender, op. cit., p.67.

6 Apud GASPARI, A revolução envergonhada, p.138. Com freqüência, mesmo autores de orientação crítica se utilizam da prestigiosa noção de "Revolução" reivindicada pelos golpistas de abril. Um exemplo disso aparece no útil livro Visões do golpe: a memória militar sobre 1964 (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994) que reúne depoimentos de lideranças militares golpistas, reunidos por M. Celina D' Araujo, Gláucio Soares e Celso Castro. Embora para os autores a noção mais adequada esteja no próprio título do livro, por vezes a palavra Revolução aparece em várias questões formuladas aos entrevistados. Certamente, trata-se de uma linguagem concessiva. Esse estilo de intervenção – linguagem mais moderada (menos "radical") – é hoje bastante freqüente, entre intelectuais e autores progressistas, quando têm seus textos publicados na grande imprensa ou por ocasião das entrevistas que concedem às rádios e às emissoras de televisão. Será esse o preço que se paga pelo privilégio de ter algum espaço na mídia burguesa?
Da mesma forma, o uso da expressão "regime autoritário" – não o de ditadura militar – para definir o período de 1964 a 1985 foi bem mais extenso na bibliografia histórica e política. A esse respeito, talvez um dos méritos da festejada obra de Elio Gaspari – três livros da série de cinco já foram publicados – resida na consagração do termo ditadura (os nomes dos três livros não deixam margens à dúvida: A ditadura envergonhada, A ditadura escancarada e A ditadura derrotada).


7 Este item retoma argumentos de momento de meu livro, O governo Goulart e o golpe de 1964. São Paulo: Brasiliense, 16.ed., 1996.        [ Links ]

8 Em 12 de setembro de 1963, em Brasília, centenas de sargentos, fuzileiros navais e soldados da Aeronáutica e da Marinha invadiram prédios da administração federal em protesto contra decisão do STF que não reconheceu o direito de elegibilidade dos sargentos para o Legislativo. O CGT e a UNE manifestaram simpatia para com a reivindicação dos subalternos. A 4 de outubro, Goulart envia mensagem ao Congresso solicitando a decretação do estado de sítio por 30 dias. O movimento nacionalista é vitorioso ao derrotar a exigência dos "duros" das Forças armadas.

9 Para organizar esse quadro do debate teórico-ideológico no Brasil dos anos 50 e 60, valho-me do livro de Ricardo Bielschowsky, Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. São Paulo: Contraponto, 3.ed., 1996.        [ Links ]

10 Sobre as diferentes formulações existentes no interior do ISEB, veja-se TOLEDO, C. N. de. ISEB: fábrica de ideologias. Campinas: Ed. Unicamp, 2.ed., 1996. É         [ Links ]extensa a bibliografia existente sobre a Cepal.

11 SCHWARZ, R. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.        [ Links ]

12 O notável filme-documentário Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, ilustra bem esse contexto de lutas e conflitos no campo brasileiro no pré-64.

13 Publicavam-se nessa época o jornal Novos Rumos e a revista Estudos Sociais, além de divulgar-se a revista Problemas da paz e do socialismo, do PC da URSS.

14 No Congresso nacional atuava, em defesa das reformas, a quase totalidade do PTB e do PSB. Durante o governo Goulart, criou-se a Frente Parlamentar Nacionalista – FPN, que reunia, além dessas duas legendas, parlamentares nacionalistas do PSD, da UDN e dos demais partidos. A Frente de Mobilização Popular – FMP, por seu lado, agregava um conjunto de forças políticas e movimentos sociais que se orientavam pela ideologia nacional-desenvolvimentista. Nesse sentido, agrupava a FPN, o CGT, o PCB, as Ligas camponesas, a UNE, o movimento nacional dos cabos e sargentos etc. No interior da UNE, atuavam pequenos grupos de esquerda – Polop, AP, MRT e outros.

15 Darci Ribeiro, em DANTAS MOTA, op. cit.

16 O livro de René Dreifuss, 1964: a conquista do Estado (Rio de Janeiro: Vozes, 1981), é         [ Links ]ainda o documento mais completo sobre a atuação do empresariado nacional e do capital multinacional na preparação e desencadeamento do golpe de 1964.

17 A rigor, o golpe não começou em Washington, como afirmava o título do livro do jornalista E. Morel. No entanto, desde a publicação dos documentos revelados pelo jornalista Marcos Sá Corrêa e vários outros trabalhos e depoimentos, posteriormente editados no Brasil e no exterior, fica comprovada a ativa participação e apoio norte-americanos ao golpe. A ditadura envergonhada, de E. Gaspari, jornalista que não revela nenhuma simpatia pela historiografia de esquerda, confirma a atuação do Pentágono e do Departamento de Estado dos Estados Unidos nos episódios de abril. Além disso, o ostensivo trabalho nos bastidores (e à luz do dia) do embaixador norte-americano Lincoln Gordon, durante os últimos meses do governo Goulart, não pode suscitar nenhuma dúvida acerca do relevante papel desempenhado por seu país na queda do governo constitucional de Goulart.

18 No comício, uma das dezenas de palavras de ordem pedia a "reeleição de Goulart"; outra, a reforma constitucional com Jango no governo. Luis Carlos Prestes (PCB) e outras lideranças nacionalistas, entusiasmados com o discurso de Goulart e com a repercussão do Comício, cogitaram, num primeiro momento, da hipótese de uma "Constituinte com Goulart". No entanto, no Suplemento especial de Novos Rumos (27 mar. a 2 abr. 1964), órgão oficial do PCB, "Teses para Discussão", nada se encontra sobre essa controvertida palavra de ordem. As reformas da Constituição que eram propugnadas nas Teses visavam viabilizar a reforma agrária, o voto dos analfabetos, a legalização do PCB etc.

19 Como se afirmou, algumas das declarações de lideranças de esquerda podem ter contribuído para unificar ainda mais a reação golpista. Brizola, no comício do dia 13, falou em "derrogação do Congresso"; Prestes teria dito – de forma defensiva, mas num tom abusivo – que as cabeças dos golpistas iriam rolar caso ousassem dar o primeiro passo. Julião falava da força das milícias camponesas na defesa da legalidade. Mas, não existem evidências consistentes para se concluir que as esquerdas tramavam ou apoiariam um golpe contra as instituições democráticas do país, caso Goulart (via "dispositivo militar") – para a realização das reformas – tomasse essa iniciativa. Sem poder argumentar aqui, minha hipótese sobre o fundamento de recentes formulações, no campo progressista, que atribuem propósitos "golpistas" aos setores de esquerda é a seguinte: para aqueles que se inspiram nas teses difundidas pelo eurocomunismo (ou "esquerda democrática", entre nós), qualquer perspectiva ou política de esquerda que conteste a universalidade da legalidade democrático-burguesa é acoimada ou denunciada como "golpista".

20 Segundo pesquisa do Ibope, realizada na capital paulista entre 20 e 30 de março, João Goulart tinha um apoio significativo dos eleitores da maior cidade do país: o governo era considerado ótimo por 7% dos quinhentos entrevistados, bom por 29% e regular por 30%; era mau apenas para 7%, péssimo para 12% e 9% não sabiam responder. Assim, entre ótimo/bom e regular, o governo tinha aprovação de cerca de 66% dos eleitores da capital de São Paulo. (Naqueles dias, como vimos, na capital paulista, ocorreu uma das maiores manifestações contra o governo.) A insuspeita pesquisa foi encomendada pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo, uma das entidades que apoiaram ostensivamente o golpe. Jornal da Unicamp, edição 204, 24 fev. a 9 mar. 2003. Sem retirar dessa pesquisa (parcial) conclusões maiores sobre a "popularidade de Goulart", ressalte-se, no entanto, que a cidade de São Paulo não tem sido, desde os anos 50, reduto de candidatos "progressistas". O PTB nunca teve ali uma base eleitoral forte e a capital – bem como o conjunto do estado – tem se notabilizado por eleger candidatos conservadores; para lembrar alguns deles, Adhemar de Barros, Jânio Quadros (por diversas vezes), Carvalho Pinto, Paulo Maluf. Lembre-se que na eleição de 1989, a vitória do pseudo "caçador de marajás" F. Collor de Melo apenas foi possível em virtude do contingente de votos que obteve no estado de São Paulo.

21 O sociólogo Herbert de Souza (Betinho), cujas opiniões nunca poderiam ser consideradas de "esquerdistas" ou de "radicais", numa entrevista, ponderou o seguinte: "Acho que houve falta de direção política articulada com a resistência militar. Se as tropas de Mourão tivessem sido atacadas, elas se entregariam. Se esse movimento tivesse sido abortado lá, o General Amaury Kruel continuaria em cima do muro. O II Exército não se definiria, a Vila Militar não desceria, e, provavelmente, o golpe teria outro resultado". In MORAES, D. de. A esquerda e o golpe de 64. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989.         [ Links ]
Artigos de Werneck Sodré, Jacob Gorender e J. Quartim de Moares sobre essa questão se encontram em TOLEDO, C. N. de. (Org.) 1964: visões críticas do golpe. 

 Democracia e reformas no populismo. Campinas: Ed. Unicamp, 2001.        [ Links ]


Artigo recebido em 3/2004.
Aprovado em 5/2004.


http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-01882004000100002&script=sci_arttext

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